fdssEnquanto isso, no meio-dia do último dia do ano, debaixo de um minúsculo guarda-sol e sentado à mesa com outras nove pessoas com instintos de mundo um pouco diferentes do mundo que penso, um dos interlocutores, mais afoito, dispara:
fdss- "(...) e o Lula é uma mentira. Tudo se deve ao governo Fernando Henrique! Vejam as privatizações, que maravilha! Hoje todos podem ter celular! -- e então passa a regurgitar repetidas palavras de ordem, típicas daquelas trazidas da "Veja", das "Organizações Globo" e da "Gazeta do Povo", as maiores e únicas fontes de cultura e informação da elite burguesa curitibana.
fdssE depois, já a querer falar do mundo latino-americano, outro interlocutor -- quase tão afoito e sem saber direito o que falava, tanto quanto o outro -- dispara:
fdss- "(...) e aquele Morales é um ditadorzinho ... só fica dando pão e circo pro povo (sic)... isso do gás é um absurdo... -- e, como o outro, passa a balbuciar frases feitas, sem sentido e sem lógica (e sem coração), e da mesma forma marcadas pelos gritos de ordem típicos daqueles trazidos pelas idolatradas fontes culturais e jornalísticas da burguesia nativa.
fdssSabia, claro, desde que decidi acompanhar a família nas festas de final de ano, o terreno onde possivelmente pisaria. Sabia, claro, que na oportunidade que tivessem, encurralar-me-iam.sDito e feito.
fdssAli, naquele cálido momento, percebo o círculo fechado. Era como na Santa Inquisição, no DOPS, no Macartismo. Estava num Coliseo às avessas. Ali, era eu e o astro-rei contra nove. Não, contra todos! O leão e nove gladiadores, afora a platéia. Alguns amigos, outros menos, e a maioria nada. Não tenho saída. A baba bovina escorria da boca de toda gente. Ouço incrédulo bobagens múltiplas, estúpidas, diabólicas e preconceituosos da maioria e não mais aguento o meu silêncio ensurdecedor. Uma pausa para um shotgun beer e, em seguida, peço um momento para breves palavras.
fdsPrimeiro, limito-me a lembrar ao primeiro as características mafiosas de todo o processo de privatizações do governo Fernando Henrique e do seu lastimoso fim: vendeu parte do Brasil por 30 moedas e hoje temos péssimos serviços de telefonia e de energia elétrica (nos casos em que o serviço foi desestatizado) e não temos mais a maior mineradora e a maior siderúrgica do mundo que, se houvesse a mínima vontade política de se querer o interesse público com uma gestão eficiente -- muito normal, como se observa com a Petrobrás (embora hoje só 60% dela seja nossa, haja vista o que fez FHC...), a Copel, a Sanepar (embora Jaime Lerner tenha conseguido vendê-la...) etc. --, poderiam ainda ter seus milionários lucros revertidos para a população. E, por fim, ainda o lembro que até em Madagascar (quase) todos tem celular -- já que, pela ótica do sujeito, parece que o "telefone celular" representa uma necessidade básico-fundamental do ser humano...
fdssDepois, insurjo-me contra a distorcida e impensada idéia do segundo, que não lembra do fato de Evo Morales, após 500 anos de opressão, ter sido o primeiro boliviano que, não fazendo parte da elite nacional, foi eleito presidente da República, sem revolução e sem armas -- ainda que a revolução e as armas fossem justificadas há séculos... Hoje, embora lentas e graduais, as mudanças de rumo econômico-social já são observadas no país -- o segundo mais pobre da América Latina --, derivadas da nova política pública relacionada aos recursos naturais, em especial o gás. E o Brasil, brilhantemente, como parte rica da relação,teve um papel exemplar, admitindo a renegociação dos contratos, a fim de pagar um preço maior -- e muito mais justo -- para gás boliviano, diferente do que faria os EUA e outros países hegemônicos, que, a força, teriam exigido o tal "cumprimento dos contratos". Logo, assim como caminha a Venezuela, o Equador e o Paraguai -- e, mesmo em marcha lenta, o Brasil e a Argentina --, as políticas públicas da Bolívia -- diferentemente do que sempre, a séculos, ocorreu -- não mais servirá exclusivamente aos interesses da grande elite, mas, sim, centrará os seus investimentos na promoção social das famílias pobres, contribuindo para reduzir as desigualdades sociais, a extrema pobreza e insegurança alimentar na Bolívia.
fdssDitadura? Não... na verdade, essa é a característica do sistema que vige nos dias de hoje, na maior parte dos países em desenvolvimento -- inclusive o nosso... --, cujos povos, em suas esmagadoras maiorias nacionais, ainda são reféns de uma "liberdade" estéril, que gera frutos apenas aos "escolhidos", aqueles viventes na certeza de terem sido divinamente abençoados e por isso tem o direito de tudo, aos montes, aos excessos, como uma total liberdade de ter e fazer tudo.
fdssSe Evo, Lugo, Chávez, Rafael, Raúl, Kirschner, Lula etc. ampliarem as suas linhas de ação e, maiormente no caso dos dois últimos, intensificarem as suas políticas públicas na direção da imperiosa justiça econômica e social, a idéia de uma "pseudo-ditadura" -- na verdade uma democracia que admitiria eleições sucessivas de seus comandantes-em-chefe (e isso sem falar, então, numa outra democracia, aquela de um partido único, como na China...) --, amedrontará apenas a nossa espúria elite, que verá as suas regalias serem distribuídas para todos. E isso, claro, é de se pensar.
fdssOlho em volta. Não vejo mais ninguém. Todos fugiram. Ninguém disposto ou capaz de tal ato.
fdsfApenas, ao fundo, um curioso avestruz, balançando a cabeça e parecendo concordar. Ou, diferente daqueles todos, parecendo pelo menos pensar.