Ricardo III é uma das personagens mais cruéis de Shakespeare. Só perde em maldade para Lady Macbeth e para Iago, em Othelo. Ricardo é mais um gangster perverso da família dos Yorks, o quarto na linha de sucessão ao trono da Inglaterra. Em sua busca pelo cetro, ele elimina um irmão e dois sobrinhos até ser coroado rei.
A peça Ricardo III gozou de enorme popularidade em sua época e é, ainda hoje, uma das peças mais encenadas de Shakespeare. Ricardo é uma figura assustadora, capaz de todas as maldades para atingir seus objetivos. Feio e curvado, com um braço paralisado, alia a deformidade física à de caráter. Sua única qualidade é um traço de fino humor que permeia seu discurso.
No monólogo inicial da peça, Ricardo, sem meias palavras, revela a própria personalidade. “Eu, que não fui talhado para habilidades esportivas nem para cortejar um espelho amoroso; pois bem, eu, nestes dias de serena e amolecedora paz, não acho delícia em passar o tempo, exceto expiar minha sombra ao sol e dissertar sobre minha deformidade! (…) E urdir conspirações”.
Quando acusado por Lady Anne de ter matado o seu marido, ele, de espada na mão, responde ironicamente que o mandou para o céu: “Que ele me agradeça o favor que lhe prestei, enviando-o para lá! Nascera para essa mansão e não para a terra”. Cruel, mas bastante engraçado, não é mesmo?
Curiosamente, Ricardo, como Macbeth tem uma espécie de torcida, pois o seu humor acaba humanizando-o, fazendo com que a platéia ou o leitor torçam em algum momento, por ele.
Diferentemente de Iago, ele tem pesadelos ao final da peça.
Por que estou falando de senso de humor? Estou falando porque não tenho como deixar de comentar o “affair” Joaquim x Gilmar, que mexeu com o país nos últimos dias. Para dizer que a reação do juiz Joaquim Barbosa não foi uma resposta às palavras do Juiz Gilmar, que disse: “O senhor não tem condições de dar lição de moral”.
O ataque verbal teve uma importância secundária no ocorrido. O que fez com que Barbosa perdesse a postura não foram as palavras ditas, mas a risada dada por Gilmar; sarcástica, cheia de escárnio, deboche, profunda arrogância e desprezo. E isso, olhando na cara de Joaquim. Uma risada como aquela fere muito mais profundamente do que uma espada medieval iguais às que Ricardo usava para assustar seus pares, como fez com Lady Anne.
A risada não atinge o corpo, como um soco recebido, mas a alma, e lá dói muito mais. É dificíl não reagir a uma risada excessivamente mordaz. Assistam ao vídeo e vejam se estou enganado. Joaquim estava exaltado, no entanto, foi a gargalhada que o tirou do sério e o fez perder a serenidade de juiz. Claro que há discórdia nos bastidores, mas ninguém se segura diante de tamanho sarcasmo. E, entre pares! Isso não interessa ao Direito, mas ao Teatro e à Literatura, sim. E, se interessa ao Teatro, interessa à vida.
É preciso saber sorrir. A força do senso de humor faz com que até um monarca cruel como Ricardo possa ter a simpatia de alguém. Se Shakespeare escreveu catorze comédias e pôs figuras cômicas em todas as suas peças, mesmo na sombria Macbeth, é porque ele sabia da enorme importância do riso da vida dos homens.
Esse brilhante texto foi escrito por Theófilo Silva, presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília, e reproduzido no "Conversa Afiada", de Paulo Henrique Amorim (v. aqui), para explicar aquela lição e aquelas verdades ditas pelo Ministro Joaquim Barbosa ao (Supremo) Ministro Gilmar Mendes, naquele célebre discussão que, se você ainda não viu, pode ver aqui e entender o que custou uma sarcástica (e tola, e diabólica) risada.