quarta-feira, 15 de julho de 2009

# terras de souza cruz

fA última edição do bom jornal jurídico "Carta Forense" traz o tema "legalização da maconha" na sua capa (v. aqui).
fE eis parte do artigo do professor e promotor de justiça paulista Eduardo Roberto Alcântara Del Campo, na esteira do que aqui já expusemos:
 
"A maconha é um mal e o seu consumo precisa ser combatido. Quanto a isso não pode pairar qualquer dúvida. Psicodisléptico classificado entre os alucinógenos leves, em suas várias formas a Cannabis, depois do álcool, é uma das drogas de abuso mais comuns em todo o mundo.
Como bem observam Manif e Elias Zacharias (1991, p. 286) o intoxicado crônico é um indivíduo física e mentalmente enfermo. Desnutrido, edemaciado, com expressão aparvalhada, rosto pálido e pele sem viço, descuida da higiene pessoal e da aparência, de modo a tornar-se facilmente reconhecido como usuário. Nos casos mais graves, a decadência orgânica degenera em desagregação psíquica e moral. O dependente passa a ignorar a realidade, refugiando-se em um mundo de fantasia. A falta de iniciativa, o empobrecimento intelectual, a apatia, o desinteresse pelo trabalho e pelo estudo levam, inexoravelmente, ao enfraquecimento dos laços afetivos. O diambista desliga-se da família e dos amigos para agregar-se, cada vez mais ao mundo das drogas, abrindo caminho para o abuso de outros fármacos e, ao final, para o confinamento em hospital psiquiátrico ou, pior ainda, para o ingresso no sistema penal (Zacharias, op. cit., p. 286).
Embora o tabaco possua, em tese, mais substâncias oncogênicas que a maconha, em razão de sua menor combustibilidade, ela apresenta concentração muito superior de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos carcinogênicos, de maneira que o consumo diário de três ou quatro cigarros de maconha equivale ao de 20 cigarros comuns (idem).
 
Colocadas essas premissas, é de se perquirir: Se a maconha é um mal dessa natureza, se nenhum benefício traz ao organismo e se deve ser combatida como um problema social grave, por que razão defender a sua liberação?
Em primeiro lugar é importante considerar que a distinção entre droga pesada e menos pesada, entre substância controlada e permitida é muito mais social e jurídica do que médica. Entre as drogas que determinam consideráveis efeitos nocivos para o indivíduo e para a sociedade e que constituem reais problemas de saúde pública, podem ser citados a nicotina e o álcool. Drogas legais cujos danos suplantam em muito os de todos os demais entorpecentes somados (Doron & Parot, 1998, p. 258). (...)
 
Analisando o que ocorre com o tabaco e o álcool, é fácil constatar que o uso de fármacos é uma característica humana, presente em todas as sociedades e culturas através dos séculos. O ser humano sofre e por ter consciência de seu sofrimento, da sua finitude e de suas limitações procura nos fármacos um (falso) alívio para sua condição.
 
Pretender eliminar por completo o consumo de drogas é proposição nefelibata que esbarra na impossibilidade de modificar a própria natureza humana. O que se busca, então, é reduzir o consumo a níveis toleráveis (se é que existem) e minimizar o impacto social que tais substâncias causam, quer pelos danos que produzem à higidez dos consumidores (e que acabam por impactar no sistema de saúde), quer pelos danos reflexos caracterizados pelas ocorrências (crimes e acidentes) relacionadas ao uso de fármacos.
 
Para controlar o consumo é necessário identificar as causas. Nessa linha de raciocínio, os fatores que levam ao aumento do consumo de drogas em geral podem ser classificados como individuais e sociais. (...)
 
Dentre todos os fatores sociais e pessoais relacionados com o incremento do uso de drogas o mais deletério é, sem dúvida alguma, o tráfico de entorpecentes, até porque todos demais são geralmente episódicos. O tráfico fomenta o consumo e a proibição alimenta o tráfico, logo a proibição aumenta o consumo.
 
Por incapacidade do Poder Público, hordas de traficantes se subsumem às funções públicas e constroem verdadeiros Estados paralelos. Estabelecem regras, cobram tarifas, realizam julgamentos, executam pesadas sentenças, aliciam jovens, difundem o vício e mudam toda a escala de valores da sociedade, atingindo o que ela tem de mais precioso, a juventude.
 
Como a via repressiva penal não vem surtindo o efeito desejado é possível que a liberação da maconha venha cortar uma das artérias econômicas que abastecem o tráfico, fazendo regredir esse cancro que consome lentamente nossa sociedade.
 
É claro que eventual liberação deve ser acompanhada de medidas de prevenção e controle, como campanhas de conscientização quanto aos malefícios da droga e de uma estrutura pública destinada a amparar aqueles que desejam deixar o vício.
 
Vejamos o exemplo do cigarro. Atualmente, em razão das campanhas e das leis que desestimulam o tabagismo, o consumo vem diminuindo lentamente e hoje o vício já não é tão aceito socialmente como era poucas décadas atrás. O fumante é hoje criticado pela maioria e está plenamente ciente da necessidade de abandonar o vício. O mesmo raciocínio se aplicaria à maconha. Uma vez liberada, os dependentes e curiosos poderiam adquirir a espécie vegetal em lojas especializadas, sujeitas a controle estatal (como o tabaco e o álcool), sem serem induzidos ao consumo pelos traficantes.
A droga adquirida legalmente sofreria controle de qualidade, minimizando os efeitos danosos das inúmeras substâncias químicas acrescidas pelos traficantes aos seus produtos, com o fito de incrementar o lucro em prejuízo da vida humana. Campanhas de conscientização sobre os malefícios da Cannabis e uma forte política de apoio aos que buscarem abandonar o vício, operariam como formas de controle, reduzindo ao mínimo o contingente de iniciados. Também é de se imaginar a proibição do consumo em ambientes fechados, como hoje ocorre com o cigarro e a previsão legal de agravamento das penas de crimes cometidos sob o efeito do fármaco.
 
Não se argumente que a liberação da droga, já experimentada em alguns países, levaria à degradação humana. Essa degradação já existe, coloca-se às escâncaras em cada semáforo das nossas cidades e nada é feito pelo Poder Público apesar da hipócrita proibição.
 
Assim, como se costuma argumentar no sentido de que apenas uma sociedade justa e isenta de desigualdades sociais pode pretender diminuir a criminalidade, o vício só pode ser combatido por intermédio de educação, conscientização, cultura e assistência médica adequada.
 
Se conseguirmos combater o tráfico (e não necessariamente o uso) talvez seja possível conseguir o retrocesso de boa parte da criminalidade violenta e da corrupção, males que também assolam esta tão sofrida terra de Santa Cruz".
fds