sexta-feira, 17 de junho de 2016

# ítalo e o jacaré



Ítalo decide morrer.

Mas Ítalo não era a adulta Veronika cheia de inquietações filosóficas do livro de Paulo Coelho que virou filme.

Era, sim, um piá de dez anos, que jamais lera um livro, que teve uma vida igual ao filme de terror de milhões de crianças negras e pobres de um Brasil real cujo trágico desfecho é quase sempre óbvio e infeliz (v. aqui e aqui).

Sim, porque tem crianças que nascem num outro Brasil, num Brasil de faz-de-conta, num Brasil-arco-íris, num Brasil-castelo, num Brasil-resort, num Brasil como a redoma exclusiva que de colosso e gigante só tem a cegueira de seus internos, tão branca como aquela da extraordinária fábula de Saramago.

Vocês já pararam para imaginar o que é uma criança de dez anos sentada no banco de motorista, ao volante de um carro cujos pedais mal são alcançados pelos seus pés?

E agora conseguem imaginar a mesma cena, mas com o detalhe de que ela estava a fugir da polícia, roubando um carro após invadir um condomínio no bairro do Morumbi (SP) ao lado de um colega da mesma idade?

Como desfecho, a polícia atira-lhe na cabeça: Ítalo era um cabrito marcado para morrer.

Em paralelo, numa realidade particular, Benjamin e Santiago tiveram o destino divino de nascer naquele tal castelo, de ter pais que não dependem do crime – crime de preto ou de branco – para viver, de ter roupas novas no armário e iogurte de morango na geladeira, de ter cama e banho diários, de ter gibis e desenhos animados educativos e, em especial, de ter tempo e amor dedicados às suas criações.

Portanto, lá e cá, são como duas linhas de vida que nem no infinito se cruzarão.

Ora, nascer no Brasil e em qualquer rincão do planeta em que a desigualdade é avassaladoramente mortal – ponha-se os EUA nessa conta – ainda é um manifesto “destino”, roleta que aos montes fabrica produtos e mais produtos de gerações eternamente alijadas de oportunidades e de futuro.

E quem desamarrará isso, dando liberdade para que os Ítalos soltem-se das cordas malditas que os asfixiam eternamente na miséria, flertando com o nada bandido e viajando no pêndulo que vai do vazio da fome ao cheiro da cola?

E quem transplantará esta vida seca de sempre, soterrada nos escombros de um não-lar, amálgama do amargo de um pais em ruínas?

A sociedade, minha gente.

Eu, você, ele, todos nós que ativamente compomos este amontoado de indivíduos e que formamos o Estado, mas que dele não queremos participar, e nem para ele votamos com a consciência desligada do umbigo, e nem sobre ele (e sobre o nosso papel) refletimos e pensamos – pelo contrário, continuamos a propagar pelos cantos das ruas e da internet frase-feitas de uma ideia reacionária, higienista, fascista e tão excludente de mundo.

E, vamos lá, por que em regra isso não acontece na Escandinávia, no Canadá, em Cuba, em lugares onde a desigualdade é muito menor e o Estado maximamente presente e atuante nas questões sociais?

Elementar, meus caros.

Neste ambiente de tudo ou nada tropical, de uma gente que só tem o sol que a todos cobre (v. aqui), um único projeto na nossa história imaginou transformar a realidade institucional: os CIEPs, as escolas em tempo integral dos gênios Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, diuturnamente boicotadas pelas elites brasileiras, dotadas de um narcisismo primitivo que sempre enxergou o problema no outro.

Não era, e nunca teremos, a solução mágica para tornar isso aqui outra terra.

Porém, toda a restruturação do processo pedagógico-educacional e a progressiva redistribuição da renda nacional – e a "política", no final das contas – são as chaves para que um dia possamos responder: o que motivaria Ítalo a não fazer o que fez?

Enfim, o episódio deste menino é mais um nítido retrato desta "banalidade do mal" na veia, ao vivo, a cores (v. aqui), e que revela a pequenez da nossa gente.

Sim, dá-me profundo lamento saber que uma criança morta por uma bala na testa não tem o mesmo pesar social daquela que foi arrastada, dias atrás, por um jacaré num lago da Disneilândia.

Convenientemente, talvez.

Afinal, neste Brasil, o jacaré somos nós.