As “redes sociais” constituem uma da maiores tragédias sociais pós-modernas, e por aqui já falamos muito disso.
Contudo, como o buraco é sempre mais embaixo – e cada vez mais sem fundo –, será inevitável ver a sua presença maciçamente mais influente na política.
Nela, na política, o corpo a corpo e o discurso real de projetos e propostas – ainda que invariavelmente conservadores na dinâmica da sociedade brasileira – virtualizam-se em poucos caracteres, em memes e, principalmente em vídeos que fogem da realidade, da verdade e da lógica para abraçar pautas caras à direita brasileira (e mundial).
Abra o YouTube e busque algum tema qualquer das ciências humanas ou sociais (política, história, economia...): ali você verá às pencas uma sopa de bosta, pus e fel.
Não cabe, a essa gente, a dúvida de Eça de Queiroz: cheios de uma cínica má-fé, promovem falas propositadamente obtusas, a fim de ludibriar e arrebanhar seus “seguidores”.
Nascidos do ventre de Olavo de Carvalho – uma espécie de Inri Cristo da nova direita brasileira, talvez com um pouco menos de seriedade –, o bando não se furta a torcer os fatos, a distorcer as ciências e a se contorcer para pregar as palavras do seu messias.
Aqui, não basta lhes enumerar adjetivos, como homens e mulheres bastante jovens, levianos, mal-intencionados, mentirosos e loucos por grana e fama fáceis; são, antes de tudo, organicamente organizados e não fazem as coisas funcionarem por mero acaso.
Sob a inspiração lunática do astrólogo e o financiamento oculto de lideranças mundiais que sopram estas novas ondas (especialmente dos EUA), atuam como se estivessem em novas cruzadas – e o inimigo agora nem é tão outro assim.
Estandartes da extrema-direita, em pauta está o estímulo ao reacionarismo abrigado num liberalismo de araque, e a crítica tresloucada à esquerda, qualquer que seja ela e qualquer que sejam os vieses: políticos, econômicos, morais, comportamentais, identitários etc.
A ter como pano de fundo o resgaste de valores inadmissíveis para o séc. XXI, esta geração de influenciadores reacionários funde com eficiente tática três campos fundamentais para chegar onde chegaram: o religioso, sob uma novilíngua cristã que amonta católicos, evangélicos, espíritas e simpatizantes; o político, arreganhando-se em uma agenda protofascista disfarçada de popular; e o socioeconômico, rezando para o capitalismo como um Deus ex machina e a liberdade como um fetiche.
Na forma, são violentos e irresponsáveis; no conteúdo, cheios de espantalhos, corvos, rifles, poções mágicas e uma verborragia que mistura Dercy Gonçalves, Assembleia de Deus e hipnose. Boa parte deles julga-se descobridores do fogo e da roda, intitulam-se professores ou “agentes da informação”, rogam-se os bandeirantes da verdade – e fazem a sua crescente audiência crer nisso.
Como? Ora, pelo caminho sempre mais óbvio: a explicação infantilizada do mundo, sempre de fácil deglutição pelo homem médio. A isso, junte-se a desinformação, a mentira (sob a roupa de “pós-verdade”), as técnicas narrativas jovens e descoladas e a adoção de um meio absolutamente radiativo – as redes sociais, numa internet que dissemina isso tudo numa velocidade e num volume assustadores.
Angustia ver que estão a convencer muita gente incauta, inocente, ignorante. Uma gente carente de um “olhar do mundo” ou propensa a enxergar o mundo sob estes olhares, pelos quais é dado um ar de naturalidade a questões que nada tem de naturais. E deixa que essa gente saia convicta e com "opiniões". Eis o drama.
Essa onda das pessoas "terem opinião" vira um tsunami social. Todos achando que devem falar sobre tudo porque acham que sabem tudo pelas pílulas de sabedoria que do YouTube recebem. O efeito Dunning-Kruger explica o fenômeno: tanta ignorância que sequer sabem o quanto não sabem...
Ora, na real, as pessoas não conseguem e nem devem saber sobre tudo. As pessoas podem ter opinião sobre brigadeiro, lasagna, inverno, Harry Potter, ter filhos, jogar com 3 zagueiros e bidê no banheiro. Nunca sobre as ciências. Nunca sobre os fatos. Antigamente se tinha vergonha de falar merda e ser burro em público. Isso acabou, as redes escondem isso tudo.
E o estrago que têm feito é de proporções atômicas, em especial nas ciências sociais, sempre sob ideias e ideologias de araque que perverte a realidade científica e factual.
Ainda tenho certas dúvidas sobre a saída.
Talvez, neste processo todo, a melhor estratégia seja minar este terreno – uma terra de ninguém onde se junta Velho Oeste e Idade Média – para implodi-lo. Ignorar as redes sociais, fazer delas um “lugar proibido”, um antro a ser rejeitado por quem quisesse verdadeiramente aprender, difundindo-se assim a ideia de que ali residia um faz-de-conta imprestável, sob uma redentora mensagem de que “quer aprender, vá à escola!”.
Por outro caminho, aceita-se estes novos tempos. A partir disso, urge duas atitudes.
Primeiro, regular. Desenvolver mecanismos de regulação tanto das "big techs" – quem, no fundo, lucra com o negócio todo –, quanto das próprias cadeias da mídia corporativa, cujas concessões públicas de rádio e tv abrem outros horizontes midiáticos para a desinformação, tudo na mão de pequenos grupos (inclusive religiosos) ou famílias.
Depois, criar os nossos espaços nas redes, ocupando este grande latifúndio. Criar canais, criar conteúdo próprios, sem os intermediadores e, muito menos, sem estar nos lugares de referência dessa gente. Para além das iniciativas pessoais, a universidade pública deveria estar nas redes. De verdade, modernamente, com professores e apoiadores capazes deste enfrentamento em defesa da ciência, seja com vídeos, desenhos, gráficos... Se algoritmos serão contra, que se crie plataformas para colocar a realidade no ar e na cabeça de milhões que nada terão a perder, a não ser os seus grilhões.
O que não deixa dúvidas, porém, é o perigo imediato e real do que esta gente está a construir.