terça-feira, 20 de março de 2018

# vitrines e espelhos: a vertigem hipersocial



A cada dia se nota a constrangedora evolução dos hábitos e do comportamento humano, demasiadamente humano, no universo das relações sociais da internet.

Em cada detalhe, em cada gesto, em cada canto, em cada esquina virtual, mais e mais pessoas parecem insistir em não entender o espírito da coisa – como aqui destacamos sobre uma das ágoras pós-modernas, o twitter, o qual é por muitos usado, infelizmente, ou como palanque de tipos celenterados que antes rastejavam pelos porões urbanos e que agora buscam ali seus 140 caracteres de fama, ou como um divã onde ácaros e anêmonas despejam seus recalques e frustrações.

Ou então, e muito mais perigoso, o tal do facebook, uma máquina de destruição social em massa e o maior big brother orwelliano jamais imaginado do planeta Terra

O que leva a massa a desabrochar seus sentimentos, vidas e vontades, tudo e a todo instante, em rede mundial, na busca de ver e ser visto  eis, então, a princípio, a cultura do grande irmão, trazendo seres que rompem continuamente a sua privacidade, os seus dados, a sua alma.

Só porque você encontrou aquele sujeito que nem se lembrava, lá da quarta série, acha bacana? Ou somente porque você é fã daquele seu amigo superbacana acha interessante derramar algumas palavras ali, na tela, bacana? Ou será que toda essa gente se engana ou então finge que não vê?

Ora, para que me interessa saber o que fulanos, beltranos e cicranos fazem das suas vidas? 

E o que dizer do “perfil” que cada um oferece: gosto de ler nietzsche, sou parda e simpática, tenho aracnofobia e uso pasta dental crest menthol extra-light, como produtos etiquetados postos em vitrine para consumo ou deleite?

As pessoas têm amigos e relacionamentos que permitem e velam por tal abertura, por tais (re)conhecimentos, por tais intimidades recíprocas... agora, fazer desse clubinho uma vitrine humana, que nos fazem reféns diários de novos contatos, de um encarniçado networking e de mais números entre parêntesis é certamente execrável. 

E, então, eis que surge o maior caos, o caos social, que vai sim, rechear-se de demagogia, de hipocrisia, de superficialidade, de mecanização das relações. 

E como piora, se degrada e não tem fim o poço da falta de razão com que se apresentam, à toa, atochadas numa casca de noz que representa um universo da falta de noção.

Ou, pior ainda, da sobra de vaidade, de auto-estima, de "autoemesia".

Neste terremoto civilizacional das tais redes sociais, como, pior ainda, o instagram, um contingente incrível que se tatua online para tentar tatear a própria realidade – e até estes dias, acreditem, a onda era o selfie after sex.

E assim avoluma, avulta, vaza e entope cada carótida das teias nervosas da rede uma imensa gente com os seus auto-retratos, seus pós-retratos ou os retratos autônomos das suas vidas que vivem de descartes, do que se tem que fazer ou ter e do que está out ou in, conforme as bancas de revista e as coca-colas da vida anunciam e dita a "modernidade líquida" de Bauman.

O "nada" adquire poderes sobrenaturais: o ar respirado, a comida engolida, o visto dos olhos, tudo se motiva para entrar na esfera do público, para o público, pelo público  e até os pêlos tornam-se públicos.

A exposição é gratuita, é ordinária, é vazia e é cheia de uma futilidade que assombra, em versões digitais e sociais da mais rasteira lenda narcisista. 

Ora, intriga-me saber o quê e como se enxergam estas pessoas, que no mais simples, cotidiano e mesmo íntimo ato da vida fazem máxima questão de, num quase ato de extrema-unção, colocarem-se à mostra para o fim abençoado da plateia.

Uma "vitrine humana", desnecessária e sem sentido, como aqui já falamos, numa época em que a moda era outra passarela.

Vê-se espelhos pra cá, poses pra cá, pratos acolá, abraços com micos, emas e estátuas vivas, tudo é visto, selado, registrado, carimbado e explicitamente disposto se quiser voar para a boca e olhos de todos, para consumo mundial, vinte e quatro horas no ar.

É a vida à la carte, a vida em pedaços, a vida fatiada e servida nas suas melhores partes, num banquete enfetichezado.

Eis a máxima: “o que não está postado no mundo da redes sociais não está no mundo”, prega esta gente com os seus luxuriantes frames, quadros e quadrantes, na profunda patologia do barulho e da irrelevância do tudo.

Ou, como diria o filósofo Guy Debord e a sua "sociedade do espetáculo", o hiperreal é onde está a verdade.

E isso tudo aliena, enfastia, engana e finge-se natural, fruto de uma geração que se empanturra com uma curtição alheia, acrítica, aviltada, atabalhoada, sofrida, sôfrega, quase sonâmbula, típica de quem anda está perdido na caverna platônica.

Não sei, talvez essa gente toda esteja afundada após mergulhar na entorpecida imagem refletida na lagoa.


Ou, então, no vácuo da psyché pobre e vazia que faz cada um "ser" somente naquele ato ou naquele objeto fotografado e espalhado para o mundo.


Para assim seguirem, etiquetados e diariamente presos num estranho processo que faz corar qualquer iluminista do séc. XVIII.

Até que, um dia, enfim uma maioria perceba do que é feita esta árvore da vida  e mais, de que os seus envenenados frutos nunca recompensaram.

E aí voltaremos a sentir, a pensar, a dialogar.

Voltaremos a ser.