O recente feito do Rivaldo -- sim, aquele do penta -- e do seu filho, ao disputarem juntos um jogo da 2ª divisão brasileira e fazerem os gols da vitória do seu time, não foi daqueles de apenas fazer história -- e de ser muito mais significativo do que aquele próprio penta (v. aqui).
Foi, para além, um daqueles negócios de enxaguar a retina, de lavar a alma e de revelar, mais uma vez, o que o futebol é capaz.
Eu, bem, eu não sei ao certo quando foi a última vez que joguei futebol com o meu pai.
Deve ter sido lá no ótimo campo da Chácara Lunardon, nos arredores de Colombo, região metropolitana de Curitiba, onde por anos, nas noites de terça-feira, muita gente se reuniu para jogar bola, assar carnes e trucar.
E isso faz tempo.
Mais do que o tempo, custa-me lembrar porque, infelizmente, jamais acreditamos no tempo, e neste descrédito não marcamos as nossas passagens, desleixando os pequenos grandes fatos da vida.
Afinal, não imaginamos -- ou duvidamos -- que os momentos, que quaisquer momentos, podem ser os últimos.
E numa daquelas noites de terça-feira, de um mês qualquer de um ano que já não posso imaginar, tive com meu velho a última partida de futebol.
Ele era um camisa 2 moderno e de garba elegância, um lateral direito com refinada técnica, apurada visão e, como assim deve honrar todo bom jogar nascido e criado no Sul do Brasil, daqueles que perdiam um joelho mas não perdiam uma dividida.
Carlos Aberto Torres? Não... o capita que me desculpe, mas nunca houve um lateral direito melhor que meu velho.
Recordo, como se fora hoje, do seu chute, da sua precisão nos cruzamentos e, diria Nelson Rodrigues, da sua saúde de vaca premiada que nem as doses industrias de nicotina abalavam -- às favas, a modéstia (e as advertências rotuladas pelo Ministério da Saúde).
Entre nós, a onda era sempre jogarmos juntos, burlando legitimamente os sorteios da pelada que porventura insistisse em nos separasse.
Entretanto, não tinha maré mansa: no mais das vezes saíamos discutindo, na vitória ou na derrota, e como se num divã seguíamos, até chegar em casa, bicudos e em filosóficas resenhas sobre um lateral mal batido, um toque mal feito ou um arremate mal calculado.
E toda terça-feira o espetáculo era o mesmo -- no fundo, claro, adorávamos tudo isso.
Até que tivemos uma última terça-feira.
Nela, o meu velho certamente já deveria revelar o peso da idade, da barriga, dos pulmões, dos músculos e dos tendões.
Nela, eu certamente já deveria ter crescido mais, revelando menos paciência, menos obediência e menos gosto por aqueles programas atípicos para quem, pelos olhos dos 20 anos, tinha o fetiche do mundo à disposição.
Mas, vejam só, a graça da memória é que ela não nos costuma trazer a débâcle daquilo que sempre idealizamos.
E por isso não guardo estes últimos dias da nossa despedida dos campos.
Guardo, sim, aqueles outros momentos: nós, em grande forma, vestindo os meiões à beira do campo, amarrando nossas chuteiras pretas, trocando longos lançamentos enquanto aquecimento e, claro, jogando juntos.
Jogando e discutindo, jogando e rindo, jogando e compartilhando a existência a cada lance, a cada minuto, perto, lado a lado.
São essas algumas das imagens que melhor cuido, armazenadas como relíquias da minha história.
E são imagens como essas que um dia também ouso ver, num mesmo palco da bola, junto com Benjamin e Santiago.
Salve, o futebol.