A greve é, historicamente, um dos mais espetaculares instrumentos à disposição dos trabalhadores organizados, um raro meio de minimamente equilibrar as forças em luta e mitigar os danosos efeitos da exploração humana via o labor capitalizado.
Existe, portanto, para que o lado hipossuficiente não padeça e, mais, se fortaleça no embate com o outro lado, detentor do poder, usurpador da mão-de-obra e cujo maior compromisso é maximizar a mais-valia, invariavelmente às custas do trabalho humano.
Eis, então, o espírito maior da greve: mais do que conter os desenfreados abusos dos donos do capital, exige a revisão dos seus lucros mediante a oferta de melhores condições de trabalho e de uma melhor repartição dos resultados.
É, assim, um constrangimento legal, moral, justo e fundamental à disposição dos trabalhadores para dignificar as relações sociais, não obstante se revele cada vez menos eficaz no ambiente pós-globalização.
Afinal, nas mais diversas atividades em que escasseiam peões e sobram bytes, os frutos da revolução industrial viraram sucata.
E, cada vez mais, parar de trabalhar não significa parar as máquinas.
Logo, as greves de hoje já não prejudicam tanto o patrão, como me lembrou o jornalista e geógrafo Wagner Aragão (o Macuco).
E, enquanto não se muda o “sistema” – e não se enxerga a insensatez da lógica deste sistema –, é preciso pensar e experimentar, a fim de se achar uma forma da união e da coletividade de trabalhadores efetivamente enfrentarem, como nas lutas grevistas pré-globalização, a mesquinhez e o individualismo dos donos do capital.
Entretanto, quando o negócio parte de trabalhadores do Estado, as condicionantes são outras.
E sobre este sentido axiológico é que me debruçava para tanto estranhar, numa ordem contraneoliberal, as greves da grande maioria dos servidores públicos, vez que vazio o antagonismo de fins e interesses e inexistente a exploração pelo máximo retorno.
Razão pela qual em todos estes anos do PT no Governo -- ainda que num ambiente de "pacto social", no qual se manteve a estrutura político-econômica, não se atacou os privilégios históricos, não se expurgou os espectros do neoliberalismo e, ainda, não se resolveu o imenso descompasso entre os salários de diversos agentes públicos, tão elevados para certos feudos (Judiciário e certas carreiras do Executivo) e tão miseráveis para baixas castas (professores e policiais, em especial) --, ceder ou não ceder, atender ou não atender da melhor maneira financeira possível os trabalhadores da Administração Pública sempre exorbitaram o conflito entre capital e trabalho, entre lucro e bem-estar.
Logo, cruzar os braços nestes casos de governos populares e com políticas populistas -- cujo máximo apoio ao Estado e aos seus trabalhadores seria a via para construção, aplicação e realização do seu mandato --, nunca trouxe a razão de ser da greve e, por conseguinte, parece-me mais como uma chauvinista chantagem, própria para terrorismos eleitoreiros, para a preguiça luxuriosa de vários agentes (v. aqui) ou para palanque de servidores candidatos a mandatos políticos.
Em suma, nos últimos doze anos a Place de Grève refutava as greves no setor público.
E disse sempre estive convicto, não obstante o tema mereça ir bem mais a fundo na reflexão, é claro.
Entretanto, como encarar o espírito da greve num ambiente em que privilégios, propósitos e práticas já não mais se sustentam na valorização do serviço público e na realização das políticas públicas eleitas, e passam a se agarrar no velho mantra neoliberal de priscas eras tucanas, sob a ordem do príncipe FHC?
Como se disse aqui e aqui, a bússola de agora parece insistir em voltar-se para outros interesses, arrochando um lado para atender às vontades e à pressão de certos e exclusivos grupos.
O dinheiro público não dá em árvore, e como escolhas a toda hora são feitas, Dilma, sua equipe e suas alianças não têm titubeado em rearranjar o destino do capital, subjugando-se às cretinices da cartilha do mercado em detrimento do lado que a elegeu.
Tira-se das políticas sociais, tira-se dos trabalhadores, tira-se do serviço público, e dá-se à nobreza que se esbalda pelas PPPs, pelos grandes conglomerados e pelos casinos financeiros do mundo virtual.
Infelizmente, certas teses neoliberais, nomeadamente sob o famigerado tripé macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação), tem jeitão de apetecer este Governo Dilma.
E aí, kafkaniana não seria mais a greve no setor público, mas a política deste Governo que, eleito para navegar à esquerda, insiste em derivar à direta.
E daquela convicção eis que hoje resta-me apenas a dúvida.