sábado, 6 de agosto de 2016

# vestindo por amor



A cada madrugada acordado, de tempo em tempo vou ao quarto para ver meus filhos dormindo.

No ninar deles, ouso imaginar os seus sonhos  e os meus também.

Mas não aqueles de dragão, reino encantado e cidades de algodão-doce repletos de personagens de quadrinhos.

Inquieta-me, pois, saber para qual time irão torcer.

Sim, talvez uma das maiores missões que todo homem tem na vida é ensinar o filho a torcer.

E, claro, a torcer pelo seu time.

Não que deva obter êxito neste encargo, mas que deve tentar, como consta na cartilha da boa pedagogia para pais do velho e rude esporte bretão.

Afinal, não há ideologia, religião ou sobremesa que importe mais que ver o seu fruto, a sua obra, a sua divina criação dividir a mesma paixão no futebol.

O trabalho, claro, é duro; no meu caso, morando longe do ninho, beira o mitológico.

Entretanto, assim vou seguindo na pessoal catequização deles, sentindo-me quase como um Padre Anchieta no desembarque pelas praias e selvas brasileiras, mas agora sozinho, sem o pelotão português  ou um furacão  na retaguarda...

Primeiro, provo-lhes diariamente que no princípio era o "vermelho" e o "preto", ao contrário do pregado pela Bíblia.

Ambos, juntos e verticalmente ligados, formam o vermelho-e-preto, a cor mais importante do planeta, que rege o mundo e que sustenta todo o cosmos – e lembro que o "verde", ao contrário do que pregam os ambientalistas, não é cor que se cheire.

Mas aqui neste Rio de Janeiro o perigo é grande, pois corro o risco dos meus filhos, confusos na identidade de tons, acabar num time nativo, maciçamente presente pelas ruas, casas, parques, praias e confins.

Bem, depois a complicada tarefa é começar a ensinar nosso hino e urros de guerra.

Embora esta segunda parte seja-lhes muito agradável – ora, toda criança que se preze gosta de berrar palavras de ordem e a esmo –, as lindas letras da camisa rubro-negra que só se veste por amor ainda saem difíceis, como quem diz sem saber muito bem o que diz.

Eles tentam, erram, desistem, tentam, erram, desistem, erram, e a cada insistência minha desiste mais do que tentam.

Começo eu a ficar meio chato, confesso.

Um terceiro momento desta saga pela torcida deles é fazê-los sentar ao meu lado e, diante da televisão, por longos minutos, ensiná-los a arte de se contorcer pelo time adorado.

Dura missão, e sei que terei trabalho para uma vida.

Mas, claro, não importa, pois o resultado poderá ser impagável.

Ora, imaginar estar ao lado de Benjamin e de Santiago e poder sentir o que há mais de trinta anos sinto quando estou com meu velho pai, na nossa Baixada ou no nosso caseiro camarote em Curitiba, valerá quantas vidas forem necessárias.

A preparação para os jogos, as idas ao estádio – inclusive do inimigo verde... , os papos preliminares, os debates com chicabons e amendoim de intervalo, as resenhas da volta, as notícias da semana, os cantos, os gols, os títulos, as rinhas, os revezes, as ressacas...

Enfim, a paixão conjunta pelo Atlético fez-me ter com meu pai esta boa parte da vida lado a lado, juntos, ligados num mesmo refrão e dividindo momentos que não teríamos se os nossos caminhos no futebol fossem diferentes.

Tivemos, na emoção de acompanhar e torcer pelo mesmo time, parte da forma da nossa relação.

E do amor que tanto nos une.