Neste fim de semana fui à casa do meu passado onde moram meus pais.
E é sempre inevitável voltar no tempo cada vez que adentro meu antigo quarto.
Ele foi minha casamata, minha alcova, meu quartel onde me trancafiava, onde afiava os meus dentes e onde pensava ser o general do mundo.
No meu covil, ora, tinha a certeza de quem era o centro do universo.
Hoje, entro e vejo que está quase tudo ali, em especial aquilo tudo que nem as marcas do tempo apagam, como se enraizado nas entranhas reais ou ficcionais daquele cômodo.
Por dentro das portas dos armários, vestígios de alguém que por ali navegava, impreciso, num turbilhão de tantas fases e sob os seus mais indômitos devaneios.
De um lado, ideias talhadas na madeira escura que dali insistem em não fugir, embora da memória já pouco se tenha.
Sobrepostos, descontinuados e rarefeitos, são escritos que iam e vinham a cada descoberta, a cada frustração, a cada lágrima, a cada arrombo de alegria.
Do outro, cromos repetidos de álbuns incompletos e que eram colados como metáfora do abandono.
Noto que aquilo, naquela época infanto-juvenil, era como as relações que se apresentam hoje: as pessoas vão colando figurinhas e enchendo páginas e páginas festivas de uma vida virtual.
Até que chegam aquelas mais difíceis...
E aí se deixa o álbum meio de lado e, simplesmente, parte-se para outro.
E assim vão se construindo afetos e contatos, cujo fim é o descarte na moldura fria de um canto do móvel – ou do facebook.
Entre os armários, agora já não há mais a minha cama e o seu baú embutido. Sequestrei-a. Carreguei-a comigo. Pintei-a.
E hoje compõe o quarto dos meus filhos, reduto onde depositarão, dormindo ou não, todos os seus sonhos da vida.
Pelas estantes, bem ao fundo ainda se vê o saldo da alma de coisas dos últimos anos do resto daquela minha vida – inclusive uma bandeira de mesa do meu amor de antes, de hoje e de sempre e que veste vermelho e preto.
Pelas paredes, ainda fulgura lânguidos rastros da cor de um ambiente que insisti em entintar de tinto, mas que já há algum tempo dá lugar à soma de todas as cores – como eu, a soma de tudo o que vivi.
Nos vidros da veneziana, a rebeldia emancipatória de quem imaginava, nos gestos de colar adesivos de marcas e de brados adolescentes, estar hasteando o pendão da ultraliberdade e transgredindo toda a ordem do lar.
Independência ou morte!, era o que se imaginava na cabeça do dono daquele principado de cuja varanda se lançaria para dominar o mundo.
E sobre a imbuia maciça da escrivaninha vejo sobrar as marcas, os riscos e os rabiscos de químicas e paixões, de contas e planos.
Soçobra uma época em que se imaginava amar a cada lindas tranças e a cada olhos de "cigana oblíqua e dissimulada" que fitava.
Sobeja um tempo em que se estudava para passar de ano e não para aprender, período gravado sob já apagadas fórmulas colegiais a revelar um jovem homem que calculava, mas que ainda só platonicamente pensava.
Diante de toda esta arqueologia, volto-me para tentar enxergar o que eu seria se não fosse aquilo tudo ali.
Para então ter a mais absoluta das certezas: não foi "aquilo tudo ali" o que me fez – e nem tão-pouco tinha na vida seca daquelas coisas a grande joia da minha coroa.
Sou, sim, fruto maleável do que sempre esteve do lado de fora daquele quarto, vivamente presente em todos os outros ambientes daquela casa, lado a lado, dia a dia, até me casar.
É dos meus pais e das minhas três irmãs que tenho a maior e mais importante memória do que me tornei.
E são neles onde sempre esteve a minha maior riqueza.