quarta-feira, 2 de outubro de 2019

# lava de chumbo



Esses dias deparei-me com um texto escrito por Osho.

Não o conhecia, até me parecer que, sem desprezar o "valor" das suas técnicas meditativas, seria outro destes gurus que volte e meia surge, no seu caso sob uma seita que parecia juntar coaching, neopentecostalismo hippie, crossfit tântrico e Jim Jones.

Bem, o tal texto  e é disso que quero tratar  falava de solidão, de solitude e do singular espaço e momento a sós.

Descobri este tal "vazio" vagando pela Europa, no meu particular camino santiagués, em profundos setenta e tal dias a rodar de mochila da Ibéria às profundezas do Leste, da Escandinávia aos confins do Adriático, com o centro do "velho mundo" como eixo e a busca do meu "novo centro" como meta.

E nele uma verdade: diante das dificuldades de "ser", são nestas situações que nos pervertermos para abrir os olhos e então conseguir ser, e (se) ver, e (se) enxergar, e (se) reparar, e se (re)encontrar. 

Peregrino, senti ultrapassar os limites da "solitude".

Lá, uma solidão sem fim abria espaço para tudo e, perigosa, levava à torrente intensa de ideias, teses, dogmas e sentimentos que faziam aprofundar ainda mais num espaço sem fim.

Intocável, vagueava até tatear numa realidade cada vez mais clara, num cheiro cego de quem ali só escutava o buraco meio misantropo de línguas que vinham a toda hora diferentes: o húngaro do diabo, o polonês da wodka, o neerlandês da fumaça, o barato do tcheco, o embrulho do croata, o grito da sicília e o sueco de um mundo que um dia há de vir – e que assim seja, amém.

Sê!, advertia-me a todo instante.

E deixava-me notar algo de muito errado no ar.

Ar rarefeito, sublinhe-se.

E que aspirado por quem não era, trazia o arrebatador efeito de compreender que a ordem das nossas coisas merece um novo arranjo.

Merecia a desordem para ser reconstruída à imagem e à semelhança de tudo o que é mais justo neste nonsense mar que permanece dividido, diluído, negro, morto.

Afinal, antes da solidão, enquanto ainda se está apenas sozinho, embrulhamo-nos num estômago de inquietações que nos fazemos sentir sem mentir, a permitir levar-se adiante como se aquilo tudo não fosse conosco, e como se dissimular para todo o exército que se forma diante do espelho fosse a resoluta salvação.

Não, não resolve.

Não, você não consegue não se ver.

E mais.

As emas que em volta emanam e borbulham aos borbotões, reclusas com suas cabeças mergulhadas em seus umbigos ou outros planetas, não te podem convencer de que a ótica é outra, de que o-seu-ponto-de-vista-não-tem-a-vista-verídica e de que as viscosas e grossas vistas de quem finge não querer ver compõem o melhor remédio da terra.

E então, naquele infindo tempo de isolação, você simplesmente percebe que lá atrás dele e de todas as sete cores daquela turva imensidão está, a um palmo do nariz, o pote dourado de colírio.

Mas, sem calma nesta hora: não se permita o mínimo resfôlego, pois o leão não é manso.

É que a sina solitária finge-se para não se mostrar que ali se está só no princípio, e neles outros verbos em outras conjugações.

Sempre, sempre no começo, a te levar só para eternos recomeços que te fazem sempre querer voltar ao zero, à vala vazia, àquela avara estaca do status quo ante, ao estado que te mantém no falso estado que te alivia para te alienar na pureza da inércia, do cômodo, do morno engodo vomitado pelas letras cartesianas da lei, da moral e dos bons costumes que por toda a vida te desencaminharam.

Esta é a promessa, esta é a jura da existência.

E por isso o privilégio por encontrar a gota d´água da cola mágica que sempre prometeram jamais existir.

Sim, sozinho e na poética da solidão, se descobre melhor o mundo que se há de viver a dois, a seis, em conjunto, em sociedade, coletivamente.

De dentro para fora, meu mundo em construção, como um álbum de figurinhas que de criança quase desisti: custoso, incerto, demorado e difícil, mas que completei e que para sempre ficará comigo guardado.

Como ficarão, espero, as lições aprendidas daquela minha silenciosa peregrinação.

Todas bem emaranhadas, apreendidas no labirinto da alma.