Deixo a seguir o posfácio da obra.
E LA NAVE VA
(POSFÁCIO)
Em outubro de 2018 – dois meses após a defesa em banca examinadora da tese de doutorado da qual este livro é fruto – a nossa distopia sopra ares surreais ao ver eleita presidente uma aberração saída dos grotões do baixo clero parlamentar e saudada nos porões da ditadura cívico-militar.
Bizarramente, pelos próximos quatro anos a República seria ocupada por um dublê de abantesma obsessor: “lasciate ogni speranza, voi ch'entrate”, passaria a ser gravado nas areias do litoral da Bahia para quem aqui desembarcasse.
À sombra desta assombração arregimentou-se grande parte da elite brasileira, disposta a articular (e distorcer) aquele protesto popular em prol dos seus interesses, a fim de manter benefícios e privilégios ainda que sob um cenário de guerra, em uma terra que hoje – mais do que nunca – condensa táticas de faroeste, técnicas de manicômio, taras de ditadura e totens eugênicos com vistas a dizimar os dispensáveis da razão neoliberal desta ordem capitalista.
A mudança na dialética social do Brasil – que
perpassa pela religiosidade neopentecostal, a
desconstrução do operariado sindical, a fetichização dos costumes, os valores
liberais não identitários e a reorganização urbana da periferia –
traduziu-se em um “fenômeno epidemiológico” que saiu das redes sociais e contagiou
as urnas, assinalando o estado da nossa decadência moral e política e,
principalmente, o ressentimento desesperado da massa brasileira que naquela
imagem de meganha tosco e boquirroto imaginava um “mito”.
Neste processo, a classe dos “intocáveis”
sempre fingiu isenção, admitindo as trevas de algo tipo governo: inepto e
indecente, armado e desalmado, capenga e enjambrado, sem luz e sem lógica
democrática, sem programas e sem propósito social, tudo num planalto cujo
cenário associaria o astral de banheiro químico com a graça de uma necrópole.
Fingiu eximição, admitindo um modelo de
sociedade baseado na precariedade, na expropriação e na violência oficial,
objeto da conjugação infausta de neoliberalismo com submilitarismo.
Fingiu sublimação, admitindo viver no fio da
navalha do obscurantismo regido pelas vontades de uma gente perigosamente
medíocre e enfaticamente lunática cujo método é a mentira e cuja bússola, o
ódio.
Fingiu esperança, admitindo ver o caos
institucional e o colapso socioeconômico, sem ordem e sem progresso, sem ações
e sem recursos, sem vida e sem negócios.
Fingiu. E finge. Finge sob as máscaras
venezianas de quem parece desfilar em seu próprio e seleto carnaval, como sói
acontecer com os brancos e azedos malandros da contemporaneidade.
Notoriamente, a “aliança siamesa” entre
endinheirados e empoderados de novo revela a plena disposição que as nossas
elites têm, histérica e historicamente, em não medir esforços para ofuscar a
realidade e dissimular as causas e as razões da desgraça brasileira que longe
passam da “corrupção” da (e na) política, canto medúsico soprado pelo bando que
deslavava a jato o Direito e que diariamente ecoava pelos jornais nacionais até
chegar aos ouvidos mais incautos e menos conscientes da população.
Ainda, as últimas eleições criminalizaram em grau máximo a política para
legitimar um sujeito que passaria a exercer o papel de “antipresidente”,
cultivando a mais carcomida política, vinculada a todos os vícios e fraudes que
há séculos o Brasil produz e no qual uma seleta casta eterniza-se em leito
esplêndido ou nas varandas da casa-grande enquanto invisibiliza a usurpação das
riquezas nacionais, a manipulação do mercado e, fundamentalmente, a exploração
do trabalho.
Eis a plutocracia brasileira, que se alvoroça
em torno do seu títere de ocasião não para domesticá-lo, mas para que áreas
caras aos seus interesses sejam cuidadas sob um novo arranjo normativo, na
forma de um tratamento à terra, à educação, à saúde, às relações de trabalho, à
infraestrutura, ao meio-ambiente, às empresas públicas, aos pequenos negócios e
aos movimentos sociais que unem o medieval ao neoliberal e o selvagem ao
mafioso, arruinando toda uma agenda tão sensível à maioria da população.
Assim, o horror da desigualdade social – que
em 2016 retomara o crescimento de forma calculada e acelerada – imediatamente
transformou-se em uma “não-pauta”, absolutamente abandonada da selvagem agenda
do presidente eleito, não apenas como sinal do seu déficit
humano-civilizacional, mas como resposta ao desejo da elite brasileira de
conservar o seu colossal quinhão da renda e da riqueza nacionais como uma eterna
capitania hereditária: o “orçamento público”, máquina da qual brotam inúmeros mecanismos de apropriação de dinheiro público – via,
especialmente, aprimorados ardis financeiros e bancários – de forma a
continuamente renovar o processo de dominação.
A caracterizar universalmente o país como o
samba e o futebol, a desigualdade volta a ser relativizada sob falácias
liberais e ordens de ajuda motivacionais que enviesam a análise do problema de
modo a ofuscar o lado perverso desta equação brasileira, crescentemente
concentrado no topo piramidal do reino social, efeitos
naturais de um sistema que manifesta seus sintomas de morbidez e decrepitude cujas
consequências são escancaradas no dia a dia das nossas cidades.
Enquanto aos ricos (e ao
capital) dia a dia são atribuídas feições heroicas e vitoriosas, seja pelos
holofotes da grande mídia, seja em declarações oficiais de um obnóxio governo
que almeja ser bem falado nos “clubes de golfe”, escondem-se as reais
circunstâncias estruturais do subdesenvolvimento e do empobrecimento geral, a
fim de que não se conheçam as razões institucionais e ideológicas da guetização
de um povo esfacelado.
E justamente nesta estética
de zoológico rural e lógica de desordem e retrocesso que caracteriza o momento
brasileiro, em 2020 o nosso pandemônio coroa-se com uma “pandemia” cujo maior
reflexo é a morte a quilo dos supérfluos humanos – a maioria das nossas
periferias –, sinal macabro da vilania debochada e também do desprezo à nossa
questão central: a desigualdade social que avisa e determina quem são as nossas
grandes vítimas, mero detalhe para a necropolítica e eterno normal para o
capitalismo como legítima expressão da barbárie.
E o tempo passa... e ao fundo um rinoceronte enfaixado segue sendo
alimentado por nossos barões enquanto bizarramente capitaneia o barco Brasil
nesta travessia infernal, com salva-vidas cuidadosamente selados para muito
poucos. Até quando?
Rodrigo Gava
Copacabana,
Rio de Janeiro