Quando no final do séc. XVIII tomaram a Bastilha e adotaram a guilhotina como um peculiar modo de se fazer política, os miseráveis resolveram que o caos deveria arder para todos os lados.
Baionetas, panfletos, passeatas, petições e nas ruas gritos vermelhos de sangue contra aquela "ordem" e aquele "progresso".
Quando no início do séc. XXI sujeitos deploráveis migram dos gritos histriônicos e roboticamente calculados da internet para alcançar grandes resultados nas urnas, o recado que se quer é direto: desordem e regresso – ou qualquer coisa ainda que se volte à Idade Média.
Fantasias, memes, mentiras, mimetismos e pelas redes bilhões de vídeos curtidos contra-tudo-isso-que-está-aí e, fundamentalmente, contra a política – no Brasil, esta onda surge com as "jornadas de junho" de 2013, cujos reflexos não cessam de provocar maremotos políticos e sociais.
Mas isso não parte direta e voluntariamente da direita, de conservadores, de liberais, dos donos do capital...
Isso parte de personagens bizarros cujas performances atendem prêt-à-porter o desespero, a desesperança, a cólera e a vida caótica em direção ao abismo de bilhões de pessoas.
Porém, tais sentimentos – e votos – da extrema-direita inexoravelmente caem no colo de quem? Claro, da direita, de conservadores, de liberais, dos donos do capital...
Por quê? Ora, porque grande parte da esquerda apequenou-se, aburguesou-se e partidarizou-se como um grupo de cinderelas que finge esquecer a abóbora nos esperando do lado de fora do castelo das instituições.
Insistimos no continuísmo da conciliação enquanto o fogo continua soprado de cima para baixo ardendo sem cessar no lombo da massa.
Insistimos no tom de que a virtude está no meio enquanto a imensa base é sufocada sem dó pela parte de cima da pirâmide social.
Insistimos em fechar os olhos para a tragédia da desindustrialização, da escolarização vazia e, em especial, da desigualdade social, fomentando indiretamente – mas convenientemente –bicos em aplicativos de entregas, de apostas, de danças, de vendas, de sexo, de tráfico... de tudo que possibilite uma renda e um sentido à vida de um mar de náufragos sociais.
Insistimos no paz e amor vendido simpaticamente pelos telejornais enquanto o subúrbio, a periferia e as favelas perambulam dia e noite pelos escombros de uma vida que sabe à pus e pólvora.
Insistimos, enfim, em defender este modelo socioeconômico vigente, fingindo acreditar que qualquer adjetivo tornasse-o possível: capitalismo humano, capitalismo sustentável, capitalismo democrático, capitalismo social, capitalismo responsável...
Nesta noite foi na Argentina onde mais um conclamou seu povo dizendo la garantía soy yo, e dele tendo apoio: vamos destruir tudo, carajo!
Nada vislumbrando, todos num beco sem saída, agarram-se na fé de uma teologia da prosperidade, na sorte das roletas virtuais e nas cantilenas de coaches e influencers como frestas por onde possam escapar em busca de sentido e dinheiro.
Ora, que perspectivas têm os milhões de jovens num modelo excludente, segregador, individualista e elitista senão quebrar a coisa toda para depois transmitir em alguma live que dê engajamento e moedas?
Ora, que saídas têm os milhões de adultos numa ordem social cujo máximo que pode prometer é uma espécie de "bricolagem social", como se o mundo possível fosse uma mistura de Uber com Leroy Merlin embalada a doses de cachaça, sarro e jogo do bicho?
Enquanto isso, a esquerda engomada, dentro das suas vestes burocratas e das suas pautas mezzo lá, mezzo cá, com seus apoiadores cirandeiros e seus yuppies que acendem uma vela para o "luxo" – cheio de casa-grandes, suvs e um obsceno consumo – e outra para o "Che" – um avatar contra a fome e a exploração do capital –, vê a banda passar.
Perdidos ou confortados, nosotros continuamos oferecendo pílulas – ou seriam supositórios? – para uso homeopático da população, enquanto a direita propõe bombas atômicas que o eleitorado curte e compra, embora não saibam que sejam de festim.
E por isso, nesta toada seremos sempre presa fácil para qualquer platelminto que prometa o impossível e que, habilmente, demonstre estas contradições.
Por sinal, querem contradição maior do que ver a precarização do trabalho e a descrença na capacidade do Estado de melhorar a vida da massa periférica no discurso da direita, como se essa não fosse a grande responsável pelo desmonte do trabalho, que leva à sua precarização, e pela entrega do Estado, que leva à sua incapacidade de agir?
Lá atrás perguntou Lênin: o que fazer?
Hoje, mais de cem anos depois, há um mundo a se (re)fazer.
Antes disso, porém, é dizer o que se vai fazer.
Sim, prometer além, um outro lugar, um lugar que parece irrealizável.
Prometer a utopia, tal qual a esquerda sempre o fez, sob um viés revolucionário que se baseava na imaginação e na construção das ideias que transformasse o presente para a existência de um novo futuro.
Prometer, mas sobretudo agir em busca deste lugar.
Acontece que quem hoje promete esta revolução é a direita, aceita sob um misto de esperança e delírio por uma multidão que infelizmente não consegue ver à frente a tragédia da "distopia", pois às cegas só é capaz de fugir do presente, sobre o cadafalso de um futuro visto do retrovisor.
E atenção: a direita faz exitosamente, joga o jogo, colocando em campo um elenco farto para consumo em série do povo.
São tantos homens com bíblias na mão – e ideias cifradas na cabeça – que diariamente dão o microfone divino para a massa falar diretamente com Deus, prometendo dinheiro (e a vida eterna), rodeando-a de ratoeiras cheias de cuidados e carinhos.
São inúmeras mulheres com câmeras na mão – e ideias de merda na cabeça – que medusicamente entoam frases e planos de vida e de sucesso que influenciam milhares ao alcance de um clique, prometendo dinheiro (e a fama eterna).
São muitos homens e mulheres que de dentro dos seus pequenos negócios e dos seus empregos irradiam a lógica privé da mão invisível, do self-made man e do "salve-se quem puder".
São infindáveis juízes, promotores e outras cabeças quadradas da máquina pública que contaminam o público com a ideia de meritocracia, pactos anticorrupção e outros contos da carochinha.
São todos os milicos que gritam "selva" da sala de estar e que cortam mãos e cabeças por cargos ou pensões.
E, principalmente, são sujeitos com um discurso exemplarmente simplista de (falsa) ruptura, de (falsa) liberdade e de (falsa) luta contra a "ordem" que laça o gado e o cerca nas redes sociais onde ninguém dá a mão pra ninguém, prometendo de modo desconexo mundos e fundos (e a pátria eterna).
Mundo que continuará nas mãos (e nos fundos mais ou menos paradisíacos) de uma única classe: os ricos, sujeitos que encartam e descartam aqueles personagens como marionetes, jagunços ou longa manus dos seus interesses, a nadar de braçada no rentismo, no entreguismo estatal, no extrativismo e nas monoculturas, concentrando renda, riqueza e poder como nunca se viu na Terra – por sinal, eis um lugar que também já não aguenta mais.
Enfim, deve ficar claro: o capitalismo e, a reboque, esta democracia representativa, morreram como arquétipos da ordem política, econômica e social.
Como zumbis, ambos são cadáveres reanimados na calada das noites por tipos bizarros, cada qual com suas particularidades: hoje é Milei, anteontem foi o Jair, antes Trump, Zelensky... e amanhã será outro pseudo-Coringa, algum sujeito qualquer fantasiado de redentor, louco ou pirofágico, mas que cuidadosamente veste por baixo os reais e sensatos interesses de sempre, sob os auspícios de milhões de "seguidores" das redes sociais.
E a esquerda, nesta onda em que insiste navegar, morrerá sempre na praia, catando conchinhas para malabarismos reformistas em um looping de faíscas e apagões.
Por isso, diante da onipotência das pautas e dos votos da direita como horizonte social e cientes desta transição gramsciana entre o velho e o novo na conformação da ordem social, a esquerda precisa pôr em marcha (i) a luta de classes sobre o discurso da conciliação e da conformação, (ii) a radicalidade institucional sobre o discurso da pax brasilis e (iii) a transformação do sistema socioeconômico sobre o discurso açucarado de um progressismo liberal que finge dar uma cara legal ao capitalismo.
É necessário esticar a corda.
E da energia que a tenciona (ou estoura), preparar a nova ordem.
E fazê-la nascer, ainda que a fórceps.