quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

# catando conchinhas: ser ou não ser?



Quando no final do séc. XVIII tomaram a Bastilha e adotaram a guilhotina como um peculiar modo de se fazer política, os miseráveis resolveram que o caos deveria arder para todos os lados.

Baionetas, panfletos, passeatas, petições e nas ruas gritos vermelhos de sangue contra aquela "ordem" e aquele "progresso".

Quando no início do séc. XXI sujeitos deploráveis migram dos gritos histriônicos e roboticamente calculados da internet para alcançar grandes resultados nas urnas, o recado que se quer é direto: desordem e regresso  ou qualquer coisa ainda que se volte à Idade Média.

Fantasias, memes, mentiras, mimetismos e pelas redes bilhões de vídeos curtidos contra-tudo-isso-que-está-aí e, fundamentalmente, contra a política  no Brasil, esta onda surge com as "jornadas de junho" de 2013, cujos reflexos não cessam de provocar maremotos políticos e sociais.

Mas isso não parte direta e voluntariamente da direita, de conservadores, de liberais, dos donos do capital...

Isso parte de personagens bizarros cujas performances atendem prêt-à-porter o desespero, a desesperança, a cólera e a vida caótica em direção ao abismo de bilhões de pessoas.

Porém, tais sentimentos – e votos – da extrema-direita inexoravelmente caem no colo de quem? Claro, da direita, de conservadores, de liberais, dos donos do capital...

Por quê? Ora, porque grande parte da esquerda apequenou-se, aburguesou-se e partidarizou-se como um grupo de cinderelas que finge esquecer a abóbora nos esperando do lado de fora do castelo das instituições.

Insistimos no continuísmo da conciliação enquanto o fogo continua soprado de cima para baixo ardendo sem cessar no lombo da massa.

Insistimos no tom de que a virtude está no meio enquanto a imensa base é sufocada sem dó pela parte de cima da pirâmide social.

Insistimos em fechar os olhos para a tragédia da desindustrialização, da escolarização vazia e, em especial, da desigualdade social, fomentando indiretamente  mas convenientemente bicos em aplicativos de entregas, de apostas, de danças, de vendas, de sexo, de tráfico... de tudo que possibilite uma renda e um sentido à vida de um mar de náufragos sociais. 

Insistimos no paz e amor vendido simpaticamente pelos telejornais enquanto o subúrbio, a periferia e as favelas perambulam dia e noite pelos escombros de uma vida que sabe à pus e pólvora.

Insistimos, enfim, em defender este modelo socioeconômico vigente, fingindo acreditar que qualquer adjetivo tornasse-o possível: capitalismo humano, capitalismo sustentável, capitalismo democrático, capitalismo social, capitalismo responsável...

Nesta noite foi na Argentina onde mais um conclamou seu povo dizendo la garantía soy yo, e dele tendo apoio: vamos destruir tudo, carajo!

Nada vislumbrando, todos num beco sem saída, agarram-se na fé de uma teologia da prosperidade, na sorte das roletas virtuais e nas cantilenas de coaches e influencers como frestas por onde possam escapar em busca de sentido e dinheiro.

Ora, que perspectivas têm os milhões de jovens num modelo excludente, segregador, individualista e elitista senão quebrar a coisa toda para depois transmitir em alguma live que dê engajamento e moedas?

Ora, que saídas têm os milhões de adultos numa ordem social cujo máximo que pode prometer é uma espécie de "bricolagem social", como se o mundo possível fosse uma mistura de Uber com Leroy Merlin embalada a doses de cachaça, sarro e jogo do bicho?

Enquanto isso, a esquerda engomada, dentro das suas vestes burocratas e das suas pautas mezzo lá, mezzo cá, com seus apoiadores cirandeiros e seus yuppies que acendem uma vela para o "luxo"  cheio de casa-grandes, suvs e um obsceno consumo  e outra para o "Che"  um avatar contra a fome e a exploração do capital , vê a banda passar.

Perdidos ou confortados, nosotros continuamos oferecendo pílulas  ou seriam supositórios?  para uso homeopático da população, enquanto a direita propõe bombas atômicas que o eleitorado curte e compra, embora não saibam que sejam de festim.

E por isso, nesta toada seremos sempre presa fácil para qualquer platelminto que prometa o impossível e que, habilmente, demonstre estas contradições.

Por sinal, querem contradição maior do que ver a precarização do trabalho e a descrença na capacidade do Estado de melhorar a vida da massa periférica no discurso da direita, como se essa não fosse a grande responsável pelo desmonte do trabalho, que leva à sua precarização, e pela entrega do Estado, que leva à sua incapacidade de agir?

Lá atrás perguntou Lênin: o que fazer?

Hoje, mais de cem anos depois, há um mundo a se (re)fazer. 

Antes disso, porém, é dizer o que se vai fazer.

Sim, prometer além, um outro lugar, um lugar que parece irrealizável.

Prometer a utopia, tal qual a esquerda sempre o fez, sob um viés revolucionário que se baseava na imaginação e na construção das ideias que transformasse o presente para a existência de um novo futuro.

Prometer, mas sobretudo agir em busca deste lugar.

Acontece que quem hoje promete esta revolução é a direita, aceita sob um misto de esperança e delírio por uma multidão que infelizmente não consegue ver à frente a tragédia da "distopia", pois às cegas só é capaz de fugir do presente, sobre o cadafalso de um futuro visto do retrovisor.

E atenção: a direita faz exitosamente, joga o jogo, colocando em campo um elenco farto para consumo em série do povo.

São tantos homens com bíblias na mão – e ideias cifradas na cabeça  que diariamente dão o microfone divino para a massa falar diretamente com Deus, prometendo dinheiro (e a vida eterna), rodeando-a de ratoeiras cheias de cuidados e carinhos.

São inúmeras mulheres com câmeras na mão – e ideias de merda na cabeça  que medusicamente entoam frases e planos de vida e de sucesso que influenciam milhares ao alcance de um clique, prometendo dinheiro (e a fama eterna).

São muitos homens e mulheres que de dentro dos seus pequenos negócios e dos seus empregos irradiam a lógica privé da mão invisível, do self-made man e do "salve-se quem puder".

São infindáveis juízes, promotores e outras cabeças quadradas da máquina pública que contaminam o público com a ideia de meritocracia, pactos anticorrupção e outros contos da carochinha.

São todos os milicos que gritam "selva" da sala de estar e que cortam mãos e cabeças por cargos ou pensões.

E, principalmente, são sujeitos com um discurso exemplarmente simplista de (falsa) ruptura, de (falsa) liberdade e de (falsa) luta contra a "ordem" que laça o gado e o cerca nas redes sociais onde ninguém dá a mão pra ninguém, prometendo de modo desconexo mundos e fundos (e a pátria eterna).

Mundo que continuará nas mãos (e nos fundos mais ou menos paradisíacos) de uma única classe: os ricos, sujeitos que encartam e descartam aqueles personagens como marionetes, jagunços ou longa manus dos seus interesses, a nadar de braçada no rentismo, no entreguismo estatal, no extrativismo e nas monoculturas, concentrando renda, riqueza e poder como nunca se viu na Terra  por sinal, eis um lugar que também já não aguenta mais.

Enfim, deve ficar claro: o capitalismo e, a reboque, esta democracia representativa, morreram como arquétipos da ordem política, econômica e social.

Como zumbis, ambos são cadáveres reanimados na calada das noites por tipos bizarros, cada qual com suas particularidades: hoje é Milei, anteontem foi o Jair, antes Trump, Zelensky... e amanhã será outro pseudo-Coringa, algum sujeito qualquer fantasiado de redentor, louco ou pirofágico, mas que cuidadosamente veste por baixo os reais e sensatos interesses de sempre, sob os auspícios de milhões de "seguidores" das redes sociais.

E a esquerda, nesta onda em que insiste navegar, morrerá sempre na praia, catando conchinhas para malabarismos reformistas em um looping de faíscas e apagões.

Por isso, diante da onipotência das pautas e dos votos da direita como horizonte social e cientes desta transição gramsciana entre o velho e o novo na conformação da ordem social, a esquerda precisa pôr em marcha (i) a luta de classes sobre o discurso da conciliação e da conformação, (ii) a radicalidade institucional sobre o discurso da pax brasilis e (iii) a transformação do sistema socioeconômico sobre o discurso açucarado de um progressismo liberal que finge dar uma cara legal ao capitalismo.

É necessário esticar a corda.

E da energia que a tenciona (ou estoura), preparar a nova ordem.

E fazê-la nascer, ainda que a fórceps.