Viver fora dos nossos castelos dá vida, dá a vida.
Passamos a viver sempre com a epígrafe do Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, na memória: "se podes olhar, vê; se podes ver, repara." (v. aqui, aqui e aqui)
E o Rio, um destes lugares em que você deve viver a pé, te faz reparar a vida.
Vida esta que mistura tudo e todos, em cada canto, em cada esquina, em cada lugar.
Preto, pobre, branco, azul, rico, médio, amarelo, marrom, miserável, milionário, tudo junto, escancarado – esta Copacabana não te separa do mundo, ele te insere nele.
E isto te provoca.
Contextualizo isto com o caso de hoje.
Há pouco estava no mercado, com Benjamin ao colo e na mão uma cesta: mate, farinha de trigo, gramas de queijo e presunto e um pacote de bolacha waffle.
Pois é, um pacote de bolacha waffle.
Na fila do caixa, aproxima-se um sujeito, meia-idade, meio fedido, todo fodido dos pés à cabeça, e me aponta para um bilhete plastificado que tinha na mão, fazendo sinal para eu ler.
Não leio.
A moça do caixa me chama, e eu sigo.
Ele me acompanha, e insiste, só com gestos e grunhidos.
A moça do caixa me dá boa noite, eu respondo, e ela começa a passar as minhas compras.
Ele não desiste, e aponta para a pequena embalagem de mortadela carregava junto ao bilhete.
Ele não fala.
Eu, de novo, não leio.
Eu, de novo, não leio.
Mas escuto, enxergo e entendo muito bem o que ele quer.
E na hora, sabe-se lá por qual razão, não lhe dou nada, nem mesmo atenção.
A moça do caixa me dá a nota, os sacos de compras e outro boa noite.
Ele ainda me olha, mas não o reparo; e, pela terceira vez, não leio.
E saio, com meu pacote de waffle.
Ele ainda me olha, mas não o reparo; e, pela terceira vez, não leio.
E saio, com meu pacote de waffle.
Sem virar pra trás.
Mas me viro para Benjamin.
E tenho um daqueles remorsos que te fazem imergir em trevas totais, imensas noites adentro.
Mas me viro para Benjamin.
E tenho um daqueles remorsos que te fazem imergir em trevas totais, imensas noites adentro.
Ali, por alguns instantes, atento ao meu maiúsculo umbigo, fiquei cego.