Vamos direto a um ponto.
Tratam-se de duas premissas que dispõe de intransigente verdade: os anos dourados do capitalismo (pós-Segunda Guerra até os anos 70) foram a exceção histórica e nesse sistema a progressão geométrica da desigualdade é fruto certo, inquebrantável, inabalável, implacável, inflexível.
A desigualdade é a sua condição, a sua predicação e a sua indefectível consequência.
A desigualdade é a sua razão de ser, existir, sobreviver e se reproduzir, motivo pela qual é
nas entranhas do capitalismo, no mínimo, que se deve mexer, cutucar, futucar,
longe daquelas cantilenas de "reformas" ou "choques" que a nada
servem, senão para a manutenção do status quo.
Em termos matemáticos é tudo muito simples: historicamente, a taxa de crescimento econômico sempre foi (e será) inferior à taxa de retorno (o "rendimento do capital"), como já cansou de explicar o Prof. Avelãs Nunes, o que conduz, a longo prazo, no próprio declínio do crescimento econômico.
Em outras palavras, o economista francês Thomas Piketty em seu best-seller, por exemplo, torna-se celebridade universal por atacar de frente a ideia de que a distribuição da riqueza econômica é secundária à criação da mesma, em balizada crítica aos ortodoxos e à turma do laissez faire.
Ora, segundo a "The Economist", hoje 1% da população tem 43% dos ativos do mundo e os 10% mais ricos detém 83% de tudo – tolerância essa ainda subsistida na (vã) esperança que todos ainda têm de enriquecerem, tal qual era a ideia-fetiche do sonho americano (v. aqui e aqui) e da tal meritocracia (v. aqui, aqui e aqui).
Mas, se mudar as estruturas do poder não parece tarefa factível neste sistema, enfocar o tema tributário e a reconstrução jurídica de certos institutos podem ser bons remédios.
Desde logo, portanto, há três ações que devam merecer a mais urgente
atenção e a mais premente colocação prática: (i) imposto sobre grandes fortunas, (ii) contribuição provisória sobre movimentação financeira e, principalmente, (iii) revisão e tributação dos direitos hereditários.
A primeira, até na nossa Constituição já está; agora, tirar do texto constitucional e colocar o "imposto sobre grandes fortunas" (IGF) no dia a dia, ainda exige muitas "coligações", muitas "alianças", muito "fisiologismo" e muita "articulação política" para se ter muita "maioria" e, pois, "governabilidade" – eis a atual via sacra para se ter o comando e tomar qualquer atitude política.
Ou, para uma atitude política transformadora, poderíamos dizer que só se exigiria um bom aparato midiático para se ter o apoio popular concentrado no pulso forte da(o) mandatária(o), e voilà.
Bem, passado isso, e fixado e regulamentado o tributo, bastaria ter o apoio do Supremo Tribunal Federal para que, nas ações judiciais que advierem, ele oferecesse um sentido progressista e republicano ao conceito de "confiscatório", longe do ideário retrógrado que lhe caracteriza.
Afinal, meus senhores, não tenhamos dúvidas: qualquer alíquota, ou faixa de alíquotas, contará com o grito supremo da nossa massa bem cheirosa, impávida diante de qualquer redistribuição ou reconfiguração fiscal, odiosa perante medidas que visem, de verdade, alterar a nossa realidade.
Mas, não se pode esquecer que, para ter utilidade, o IGF deve pegar na veia, não deve mirar as alturas e simplesmente focar em meia dúzia de Tio Patinhas; ora, em um país tão, tão, tão desigual como o nosso, não fica difícil ver que "grandes fortunas" não são fortunas de tantos zeros assim, que deixe lépida e fagueira toda uma franja perversa que recrudesce o núcleo da desigualdade.
Por isso, taxar a "riqueza" – o capital (!) –, e não a renda, é condição elementar para que se reestruture a sociedade.
Em seguida, o resgate de um tributo aos moldes da "contribuição provisória sobre movimentação financeira" (CPMF), cujo fim -- obviamente -- não produziu a alardeada redução de preços para os consumidores, tão-pouco maior eficiência mercantil.
Ao contrário do que bradava o núcleo conservador, os
preços permaneceram os mesmos e, ipso
facto, apenas fizeram aumentar o lucro das indústrias e
empresas (v. aqui).
Logo, e isso já se sabia, os únicos beneficiados com a derrubada da CPMF foram os grandes conglomerados econômicos – e a chusma criminosa de plantão, com suas lavagens, sonegações e coisas que o valham – que tanto lutaram por isso, por meio das suas bancadas no Congresso e a turma da oposição.
Enfim, deste único tributo ao qual ninguém que se enquadrasse na condição de sujeito passivo podia escapar, duas conclusões óbvias podem ser tiradas: o que contribuía para o financiamento da saúde, da previdência e da assistência social, agora, é do lucro privado; e o que antes era para rastrear e punir a ação de bandidos, agora ajuda a escondê-los.
Depois, urge a necessidade da herança ser verdadeiramente tributada e dos seus direitos serem reconfigurados.
O primeiro caminho é bastante simples: aumentar a alíquota sobre o imposto da transmissão de herança (ITCMD), de competência dos Estados.
No Brasil, há um limite esdrúxulo de cobrança igual de 8%; porém, a média desta alíquota entre os Estados tributantes é ainda mais esdrúxula: não chega a 4% dos bens envolvidos -- mundo afora, a média supera os 30% (v. aqui).
O motivo de termos tão baixa alíquota é elementar, afinal, quem tem (muita) herança pra transmitir nesta terra e a quem interessa mantê-la tão baixa (e evitar tanta tributação)? Ora, é outro imposto de rico, sobre rico e para ricos.
E não se venha com o blá-blá-blá de que aqui já se paga altos tributos etc., pois, fora a Escandinávia, todos os países desenvolvidos do planeta -- cujo sistema fiscal dispõe de elevadas alíquotas -- tributam a herança em mais de 40% (v. aqui)!
O segundo caminho, claro, é mais difícil, a exigir emenda constitucional; porém, ainda mais difícil é continuar a enfrentar este ultrajante modelo em que se perpetua riquezas sem produção, em que se multiplica renda sem trabalho, em que se eternizam condições sem contraprestações.
E, mais do que tudo, em que se fulminam as oportunidades sociais pelo mero acaso do nascimento.
O conservadorismo institucional que nega todas as fórmulas inovadoras, evidentemente gosta de rechaçar este plano de um novo modelo de herança, denominado "herança social".
Essa herança social é definida, nas palavras de Mangabeira Unger, professor de Harvard, como "contas sociais", estabelecidas pela sociedade em nome de cada indivíduo e que deveriam substituir progressivamente a herança privada.
Uma parcela dessas contas representaria pretensões incondicionais oponíveis ao Estado para a satisfação de necessidades mínimas e universais; outra, seria adequada às circunstâncias individuais, minimamente estabelecidas em lei; e outra ainda poderia ser concedida como uma recompensa por potencial comprovado ou realizações.
Assim, uma parte destes novos direitos fixar-se-ia na provisão de serviços por um aparato público unitário, no modelo tradicional do Estado de bem-estar; outra parte, resultaria em pontos a serem gastos pelo indivíduo, por sua própria vontade ou com a aprovação de curadores, entre prestadores de serviço concorrentes.
Os propósitos principais de tais "contas" seriam a educação e o capital produtivo (trabalho).
A educação orientada para a aquisição de habilidades práticas e conceituais e que continuasse durante toda uma vida ativa, com a escola assumindo a sua missão precípua de resgatar a criança de sua família, sua classe, seu país, seu período histórico e mesmo da sua personalidade, e de prover-lhe acesso a experiência desconhecida (v. aqui).
O trabalho como meio para o capital produtivo, idealizador da transformação social, familiar e pessoal, receptador dos frutos amealhados por particulares por convenções jurídico-institucionais (a herança), herdadas da sociedade – da conformação social – e sob a tutela do Estado, agora reinvestidos em proveito também da própria coletividade.
Enfim, passos em cuja direção pode-se vislumbrar potencial de alguma "justiça social" advinda do indócil e inexpugnável capitalismo.
E tudo, claro, sem fetiches.