No final de outubro, no Vaticano, ocorreu o "Encontro Mundial dos Movimentos Populares", presidido pelo Papa Francisco e com a presença dos representantes dos maiores movimentos sociais do planeta.
Do Sumo Sacerdote já falamos muito -- aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo --, mas nunca será demais.
A cada ato, a cada discurso, a cada gesto, a cada manifestação e a cada decisão como representante máximo da Igreja Católica ou como Chefe de Estado, Papa Francisco diviniza a nossa espécie, orgulhando-nos.
No seu discurso neste Encontro, centrou-se em três palavras: "terra, teto e trabalho".
E não titubeou em criticar o capitalismo, o neoliberalismo e a sociedade de consumo, bem como não se furtou a defender a economia solidária, as políticas públicas, populares e populistas e a reforma agrária (como inclusive aqui já o fizera, ano passado, novamente na presença do líder do MST).
Enfim, Papa Francisco não quer dourar a pílula, não quer manter aparências, não quer ser peça decorativa de uma civilização e não quer figurar como nota de rodapé da história -- afinal, quer seguir à risca o conselho que deixou aos jovens na última Jornada Mundial da Juventude: "Sejam revolucionários!".
Abaixo, trechos do que disse o magnífico Francisco.
Palavras, pois, a serem talhadas em muros mundo afora (aqui, na íntegra).
"(...) Eu estou contente por estar
no meio de vocês.
Aliás, vou lhes fazer uma confidência: é
a primeira vez que eu desço aqui [na Aula Velha do Sínodo], nunca tinha vindo.
Como lhes dizia, tenho muita alegria e lhes dou calorosas boas-vindas.
Obrigado por terem aceitado este convite
para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo hoje, vocês,
que sofrem em carne própria a desigualdade e a exclusão.
Este encontro de Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: vocês
vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas
vezes silenciada.
Os pobres não só padecem a injustiça, mas
também lutam contra ela!
Não se contentam com promessas ilusórias,
desculpas ou pretextos.
Também não estão esperando de braços
cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou,
se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de
domesticar.
Isso é meio perigoso.
Vocês sentem que os pobres já não esperam
e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e,
sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que
sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao
menos, tem muita vontade de esquecer. (...)
Este encontro nosso não responde a uma
ideologia. Vocês não trabalham com ideias, trabalham com realidades como as que
eu mencionei e muitas outras que me contaram... têm os pés no barro, e as mãos,
na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta!
Queremos que se ouça a sua voz, que, em
geral, se escuta pouco.
Talvez porque incomoda, talvez porque o
seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam,
mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e
projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no
reino da ideia, é meu projeto.
Não é possível abordar o escândalo da
pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e
convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos. (...)
Este encontro nosso responde a um anseio
muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos;
um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com
tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho.
É estranho, mas, se eu falo disso para
alguns, significa que o papa é "comunista".
Não se entende que o amor pelos pobres
está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês
lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina
social da Igreja. (...)
Vou me deter um pouco sobre cada um
deles, porque vocês os escolheram como tema para este encontro.
A terra. (...) A apropriação de terras, o
desmatamento, a apropriação da água, os agrotóxicos inadequados são alguns dos
males que arrancam o homem da sua terra natal. (...)
Eu sei que alguns de vocês reivindicam
uma reforma
agrária
para solucionar alguns desses problemas, e deixem-me dizer-lhes que, em certos
países, e aqui cito o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, a reforma agrária
é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral (CDSI, 300). (...)
Por favor, continuem com a luta pela
dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se
beneficiar dos frutos da terra.
Em segundo lugar, teto. (...) Vivemos em cidades que constroem
torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma
parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que os assentamentos
pobres são marginalizados ou, pior, quer-se erradicá-los! (...).
Vocês sabem que, nos bairros populares,
onde muitos de vocês vivem, subsistem valores já esquecidos nos centros
enriquecidos. Os assentamentos estão abençoados com uma rica cultura popular:
ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do
próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos.
Por isso, nem erradicação, nem
marginalização: é preciso seguir na linha da integração urbana.
Terceiro, trabalho. Não existe pior pobreza material –
urge-me enfatizar isto –, não existe pior pobreza material do que a que não
permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho. O desemprego juvenil, a
informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o
resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os
lucros acima do homem, se o lucro é econômico, sobre a humanidade ou sobre o
homem, são efeitos de uma cultura do descarte que considera o ser humano em si
mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora.
Hoje, ao fenômeno da exploração e da
opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça
social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos,
"sobrantes".
Essa é a cultura do descarte, e sobre
isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora.
Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a
pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que
estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o denominador do
universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontecesse essa
inversão de valores.
Há pouco tempo, eu disse, e repito, que
estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas.
Há sistemas econômicos que, para
sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso,
os balanços das economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro,
obviamente, ficam saneados. (...)
Alguns de vocês expressaram: esse sistema
não se aguenta mais.
Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos.
Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos.
É preciso fazer isso com coragem, mas
também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem
violência. E entre todos, enfrentando
os conflitos sem ficar presos neles, buscando sempre resolver as tensões para
alcançar um plano superior de unidade, de paz e de justiça.
Os cristãos têm algo muito lindo, um guia
de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes
vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de
São Mateus e 6 de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a passagem
de Mateus 25. Eu disse isso aos jovens no Rio de Janeiro. Com essas duas
coisas, vocês têm o programa de ação.
Assim, parece-me importante essa proposta
que alguns me compartilharam de que esses movimentos, essas experiências de
solidariedade que crescem a partir de baixo, a partir do subsolo do planeta,
confluam, estejam mais coordenadas, vão se encontrando, como vocês fizeram
nestes dias. (...)
Estamos neste salão, que é o salão do
Sínodo velho. Agora há um novo. E sínodo significa precisamente "caminhar
juntos": que esse seja um símbolo do processo que vocês começaram e estão
levando adiante.
Os movimentos populares expressam a
necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes
sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a
sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse
protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal.
A perspectiva de um mundo da paz e da
justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige
criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as
estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de
energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino
comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor.
Eu os acompanho de coração nesse caminho.
Digamos juntos com o coração: nenhuma
família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem
direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá.
Queridos irmãos e irmãs: sigam com a sua luta, fazem bem a todos nós.
É como uma bênção de humanidade."
Os papas e um grande Fiel |