terça-feira, 30 de outubro de 2018

# eu, eu mesmo e os outros



Tenho e sempre tive amigos e familiares dos mais variados espectros políticos  e, por conta do meu habitat e da minha criação e formação, a ampla maioria é meio liberal, meio reacionária, ou seja, situada a minha direita, como assim se convencionou denominar os conservadores de plantão.

E sempre encarei isso com muita naturalidade, pois visões de mundo dentro de quadrantes políticos não poderiam superar a sincera troca de afetos e a busca pelo aprimoramento das relações pessoais e sociais, posto que o lugar político e o paradigma existencial que nos orientavam era sempre o mesmo: a democracia e a dignidade da pessoa humana.

Ocorre que este 2018 trouxe um tsunami que arrancou a fantasia político-ideológica e os adereços "do bem" de muita gente.

E assim desnudou a real essência de muitos que, afinal de contas, nunca quiseram saber de política, de debater política, de defender e de compreender a política. 

Estes, na real, revelaram-se gostar de ideias, práticas e sujeitos que estão fora dos quadrantes da política, por uma razão bastante simples: toda a arquitetura do fascismo nega e está fora da política.

Não por outro motivo, o que a candidatura vitoriosa sempre ofereceu foi à revelia do diálogo, da razão, da fraternidade, da igualdade, da liberdade, do pluralismo e da harmonia social.

E em momento algum o que diz, o que pensa e o que promete se concilia com democracia e com nossos supremos valores constitucionais.

Pelo contrário, sempre encarnou fundamentos não civilizatórios, quase medievais e bastante autoritários, alicerçados em pontos bastante relevantes e onipresentes da sua campanha e da sua existência, cercado de outros seres tão esdrúxulos, toscos, obtusos e picaretas quanto ele.

Este indivíduo, da linha hominídeo despreza qualquer luz de democracia: não se importa com "as regras do jogo", nega a legitimidade de oponentes político, delira com a violência e a restrição das liberdades e ignora a diferença, a diversidade e as pautas humanitárias em geral.

Junte-se a este conjunto a mais absoluta incompetência, a total falta de noção de gestão pública, o flagrante desconhecimento da realidade brasileira, o culto à paranoia do inimigo público, a insensibilidade às classes mais vulneráveis e às minorias e... voilàtudo está flagrante no ser e no viver de Jair, esta figura que, lembrou o filósofo Vladimir Safatle, parece se inspirar naqueles líderes autoritários invariavelmente representados como uma mistura de militar com barbeiro de província (v. aqui).

Mas, evidentemente, da grande "pizza" que representa os eleitores do candidato eleito tenho em meus laços familiares e de amizade tipos em diversas fatias.

Vejo nelas o voto do orgulho fascista, mas também há o voto do ódio antipetista e o voto da ordem militarista, os quais representam a maior parte da fôrma e que me merecem desprezo e desrespeito, por todos os argumentos e razões que neste e em vários espaços mais ou menos virtuais já discorri: em resumo, não se trata de política, são escolhas pré-iluministas, conceitos pré-modernos e desejos civis, sociais e morais a mim repulsivos.

Claro que, em pedaços muito menores  pelo "lugar social" que ocupo , há o voto da fé neopentecostal, o voto da ignorante desinformação e o voto esquizofrênico contra-tudo-que-está-aí, mas confesso que estes me causam culpa, remorso e uma certa aflição, cujos sentimentos exigem ainda mais conversa, atenção e participação de nossa parte.

Entretanto, nesta pizza também tem uma considerável fatia sem a cobertura escancarada destes sabores, mas com a borda recheada: é a daqueles que votaram nulo.

E se aquelas primeiras pessoas, que já há algum tempo insistem em propagar, apoiar e confirmar uma candidatura cheia de raiva, rubéola, tuberculose, anemia, espuma, armas e mentiras, são pessoas por mim esquecidas e de cuja companhia dispensei, agora não esquecerei as pessoas que, num sopro de pseudoplenitude, julgaram-se acima do bem e do mal para lavar as mãos, como se aceitando indiferente o grito desvairado da ruas: "Crucifica-o! Crucifica-o!".

E atenção: como sempre na história, fascistas não chegam ao poder porque a maioria da população era fascista. Na verdade, chegam ao poder porque muitas pessoas bastante razoáveis e moderadas se abstiveram, se calaram e fizeram vista grossa da tragédia que adviria.

Por falta de coragem, por falta de vontade ou por excesso de irracionalidade  nascido do horror psíquico a um partido político , estas pessoas, com o seu não-voto, são corresponsáveis pela eleição de Jair, o Platelminto (v. aqui).

Omissas, aceitaram que um psicopata, um dos mais abjetos incompetentes "políticos" da história deste país fosse eleito.

Intransigentes, arrogantes e soberbas, não quiseram enxergar o movimento vivo que saltava e se balançava a um palmo dos seus narizes, crendo, ao contrário, num fantasma e se alimentando por uma falsa imagem da realidade, capaz de fazê-las compreender um Brasil entre dois "extremos".

Cegas como as personagens da fábula máxima de José Saramago e no silêncio de uma hipocrisia sórdida que acredita na "neutralidade" diante do caos, foram covardes e inconsequentes na anulação do seu voto e no simbolismo do seu discurso.

Estas pessoas, infelizmente, ajudaram a sustentar (e a repetir) um grave erro da nossa história, que atropelará nossos valores constitucionais, carcomerá nossos direitos e garantias, destruirá nossas instituições e tingirá com tinta sombria nosso futuro, flertando na roleta-russa do "pagar para ver" o quanto de verdade haverá na quantidade de falsas promessas que Jair há trinta anos faz.

Fingindo isenção, admitiram as trevas de um arquétipo de governo: inventado, armado, enjambrado, sem propostas concretas, sem programas sociais e sem lógica democrática, tudo num "barata voa" digno de esquetes humorísticos.

Fingindo eximição, admitiram um modelo infausto de sociedade, baseado na precariedade, na violência oficial e objeto da conjugação pinochetiana de neoliberalismo com militarismo.

Fingindo sublimação, admitiram viver no medo de um Estado moralizador e no fio da navalha do obscurantismo regido pelos interesses prostibulares de uma gente perigosamente medíocre e enfaticamente lunática.

Fingindo esperança, admitiram ver o caos institucional e o colapso econômico no qual mergulharemos, sem ordem e sem progresso, sem ações e sem dinheiro, sem programas e sem negócios.

E, francamente, calaram-se diante do colapso, produzindo uma "autoverdade" que despreza não apenas os fatos e a razão, mas o próprio óbvio ululante, simulando assim um ar de normalidade, sem perceber estarem entorpecidas por um blend de ódio e delírio (v. aqui) que colocou no poder um "capitão de milícias" cheio de memórias nauseabundas. 

Tristemente, não conseguiram compreender os riscos deste modelo, as ameaças deste governo e a intensidade da tragédia social que está em jogo, ousando ver com descaso os seus efeitos ou como mero falastrão o seu líder, não enxergando que o dito cujo é uma besta que vende falso moralismo para se alimentar de reais mamatas e mutretas. 

E aceitaram tudo isso, com recalque e à revelia do que foi exposto amiúde nas últimas semanas – inclusive por mim, em conversas, em cartas e em mensagens, sem nunca oferecerem a racionalidade como argumento e a realidade como premissa.

Temos, ao cabo, que o resultado disso é complexo fruto de uma sociedade doente e distópica, incapaz de não ver a diferença entre dois mundos, entre duas eras, entre dois tempos históricos.

Seja na ação delirante do voto em Jair, seja na omissão em ladainha do voto nulo, veem um lado ser contra a tortura, a barbárie, o preconceito, a repressão e o autoritarismo e querem comparar com um outro lado que estimula estes desvalores, a afrontar direitos e garantias fundamentais, previstas em qualquer carta mais ou menos universal de direitos humanos.

Esquecem, assim, que a ruptura democrática e a perversão social não são obras de um estúpido qualquer.

São, na verdade, obras de legitimação desta sua estupidez.

E se a história do Brasil será implacável com a escolha feita por estas pessoas, e se a s suas histórias, cedo ou tarde, as acusarão de cúmplices da tragédia protofascista que mergulhará o país em trevas totais, eu demorarei para superar a decepção e a traição delas às nossas histórias em particular.

Ora, de que servem aqueles abraços, aqueles brindes, aqueles porres e aqueles tantos gestos e momentos de afeto se, do lado de fora, diante do outro, os valores, a vontade e a verdade são outros?


É uma pena, enfim, ignorarem que sob tal visão fatiada de sociedade o "outro" seja uma mera circunstância.


Até porque, como outrora disse Bertolt Brecht, importar-se apenas quando nos convém costuma ser tarde demais.