"(...) e a gente monta uma central de sequestro... e não é pelo dinheiro, não... é pra gente acabar com tudo que é filho da puta que rouba do Estado."
É com esta frase que o sempre polêmico e provocador cineasta Sergio Bianchi encerra o seu perturbador filme "Quanto Vale ou é por Quilo?", o qual só agora pude (re)ver.
O filme traça um paralelo entre o modelo escravocrata da época imperial e o atual modelo capitalista neoliberal, muitos políticos e tantas ONGs e tantos filantropos: lá e cá, a vontade de lucrar em cima dos miseráveis continua.
O dinheiro que os governos investem nas ONGs que trabalham com filantropia seria suficiente para ajudar na satisfação das necessidades básicas e no desenvolvimento de milhares de famílias carentes. Mas nem metade chega em seu destino -- e os dados apresentado no filme são alarmantes. Vão para onde? Claro, para o deleite de repugnantes políticos e biltres empresários do showbusiness filantropo.
Não se quer, claro, generalizar e achar que todas as ONGs são um poço de más intenções, hipocrisia, corrupção e lavagem de dinheiro. Não! Não!
Quer-se, apenas, mostrar que há muita coisa errada nisso tudo, em especial sob dois aspectos (afora, claro, a questão dos crimes cometidos pelas quadrilhas de políticos e empresários): (i) o fato de a elite achar que merece estátuas ou indulgências eternas por apenas cumprir o seu dever humanitário, cívico e (de classe) social, e (ii) o fato de a sociedade em geral achar que a transferência de responsabilidade do interesse público para o privado é a solução.
E aqui está a grande questão, pois a "ajuda" (a solidariedade, a fraternidade...), torna-se "mercadoria", uma postura positiva para a obtenção de retorno e recursos, a sublinhar a farsa da "responsabilidade social", de um "terceiro setor", de um "capitalismo domesticado".
Trata-se, na verdade, de um sistema que tão-somente incorpora novas indústrias para gerenciar a miséria e os miseráveis, a tornar intocável a ideia neoliberalista das bravatas e cantilenas privatistas que culmina na "ongzação" do Estado (v. aqui).
O filme-documentário trata, assim, destes mercados do assistencialismo e do voluntarismo e da disputa competitiva pela pobreza alheia. Mas mostra ainda mais do que isso.
Mostra os outros tentáculos desta sociedade do espetáculo do consumo, desta sociedade que cria necessidades desnecessárias como único meio de inserção social -- “o que vale é ter liberdade para consumir, essa é a verdadeira funcionalidade da democracia", clama um dos personagens do filme.
Mostra, enfim, a grande chaga pública, o maior dos crimes e cuja hediondez é flagrante: aqueles cometidos pelas máfias que fulminam o Estado brasileiro -- le Cose nostre (v. aqui) --, as quais, dentre outros crimes, desviam e roubam dinheiro público, como no caso da ideia de inclusão digital que ilegítima e ilegalmente beneficia uma ONG mercantil (e os políticos coligados) que superfatura a compra de computadores de terceira linha e ainda se utiliza de funcionários pobres ("laranjas") para abrir contas paralelas que mais-ou-menos esquentem o dinheiro sujo.
Mesmo que a frase final do filme (e que abre essa bula) não mereça defesa e não seja o caminho correto -- vez que o pretendido "progresso" não pode exigir tamanha desordem (v. aqui) e que, sob a ótica cristã ou da Lei, o mal (e o ilegal) não deva ser perseguido e respondido com o mal (e o ilegal) --, essa ideia robinhoodiana e essa pulsante vontade de uma divinal justiça por mãos próprias terrenas sempre atiçam o debate que faz discutir a justiça e o Direito em nosso Estado.
Aquela frase final assusta, mas nos faz pensar.
E para isso basta que saiamos dos nossos castelinhos e da nossa "cegueira branca" (v. aqui).
fds