quarta-feira, 31 de julho de 2013

# ver e reparar


Na epígrafe de "Ensaio sobre a cegueira", José Saramago traz: "Se podes olhar, vê; se podes ver, repara".
 
Bem, como já dissemos aqui, o Brasil progride e se constrói no caminho do desenvolvimento.

E a divulgação dos dados sociais e econômicos mais recentes – o famoso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos Municípios – mostra que em vinte anos isto se deu de forma notável (v. aqui).

De Itamar/FHC a Lula, o país mudou e melhorou como nunca.

E por isso que aquelas malfadadas e genéricas manifestações, apartidárias e acéfalas, contra tudo e contra todos, mostram-se cada vez mais nonsense e perigosas – como alertou o Papa Francisco, ao lembrar que a juventude não pode ser “manipulada” (v. aqui) –, num processo contrário e confuso cuja origem e consistência aguardam explicações, mas que já consegue apontar razoáveis vestígios de segundas intenções.

Se descuidados ou alienados, a análise do que se via nas ruas era de um país apocalíptico
como se fôssemos uma Islândia tropical ou uma Grécia quinhentistacuja monstrenga mobilização era apenas um claro movimento contra um lugar aos frangalhos, em atraso insuportável, num momento histórico de tragédia e a sucumbir no leito de morte. Amém.

E eis que os dados – os números! – sociais e econômicos mais recentes mostram que nestes vinte anos o Brasil avançou de modo notável.

O primeiro fato: o IDH avançou quase 50% e saiu do patamar “muito baixo” para um nível “alto”.

Outros fatos: a desigualdade caiu e a expectativa de vida aumentou.

E o maior fato: a qualidade de vida tinha nível “muito baixo” em 85% das cidades e hoje essa classificação envolve apenas 0,6% dos nossos municípios.

Sim, é um negócio muito sério. Hoje, de cada 200 municípios brasileiros, apenas 1 (um) tem um nível de desenvolvimento muito baixo.

Infelizmente, ainda temos grandes distorções geográficas de (i)mobilização social, pois se percebe a discrepância entre Norte e Sul, mas não se pode querer admitir que não houve progresso e que a coisa não se ajeita.

E aqui não partidarizamos a discussão e não fatiamos os dados, afinal, um fato justificante é de clareza solar: o progresso ocorreu na esteira de 25 anos de regime democrático, o maior da nossa história.

Outra razão: a Constituição de 1988, que trouxe inúmeros direitos sociais e que consagrou como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos (art. 3o).


E,  piano, piano, tais fins o nosso Estado vai buscando e tirando-os do papel.

Porém, isso não se constrói com o Estado mínimo e terceirizado, com o mercado onisciente, com as sete maravilhas da iniciativa privada, com métodos empresariais de gerir a coisa pública, com a turma do impostômetro e do establishment, com ortodoxia econômica e com a maximização do “laissez faire”.

E, obviamente, também não se forma um grande Estado com oligarquias políticas coronelescas, com instituições frágeis e agrupelhadas, com servidores públicos incompetentes e velhacos, com alianças espúrias e políticas públicas conservadoras, com crimes contra a Administração Pública e com a desídia confortável do “laissez passer”.

E é aí que está o problema.


Afinal, nas ruas e na grande mídia o que se vê é toda uma gente querendo abrir bem os olhos para estas últimas, e apenas as pernas para aquelas primeiras.

Pois ficamos com Goethe, ao gritar no seu leito de morte: "Licht, licht, mehr licht!".



# atleticania (iv)


E não é que Vágner Mancini - o nosso treinador com jeitão de dono de açougue de bairro rural e corista de igreja evangélica - conseguiu ganhar mais uma, a segunda seguida fora de casa!?

Mais uma vez foi um bumba-meu-boi, numa qualidade sofrível e com uma retranca que acabou dando certo. E mais uma vez compensamos outra derrota injusta do começo do campeonato. Aleluia, aleluia!

O problema é que jogo assim é tenso, um vacilo qualquer é fatal e as expectativas são mínimas. E confesso: quando vi o gol do Galo aos 35' do segundo tempo, desisti.

Jamais poderia acreditar que não perderíamos mais aquele jogo.

E foi então que se fez Zezinho.

O guri é bom, quase muito bom. É daqueles jogadores que jogam e pensam, é daqueles meias que marcam e daqueles marcadores que armam o time e que dão passes como poucos. Entrou no lugar de um dos brucutus da cabeça-de-área, deu duas assistências e viramos o jogo.

Meritório conserto do nosso Vagner, que parece errar na saída, mas que mostra querer ensaiar boas mexidas no time e bem ajustar um bloco que faz o principal para quem tinha a pior defesa do campeonato, ou seja, tentar não levar gol.

Fixou Pedro Botelho lá atrás, sem apoiar, postou dois volantes que não passam da intermediária, exigiu bicões de tudo e de todos e pôs Marcelo pra correr desajuizadamente.

Resta agora fazer justiça e não mais inventar no comando do ataque - o nosso artilheiro sobra -, continuar segurando os laterais como quase-zagueiros, deixar Zezinho, Baier e Éverton na armação e aguardar uma boa volta do volante Deivid, muito melhor que os dezoito que por ali têm passado. E, claro, rezar para que algum quarto-zagueiro apareça (v. aqui).

Pelas circunstâncias, a vitória foi espetacular, quase épica.

Mas que ainda não dá ares de ser sustentável, embora já parece se sustentar na consciência dos nossos limites.

E isso dá esperança, como o gelo.


 

terça-feira, 30 de julho de 2013

# uma questão de lógica

 
Num de seus aforismos, Franz Kafka escreveu: "A partir de um certo ponto não há mais retorno – e esse é o ponto a ser alcançado".

E diante das últimas palavras e ações do novo Papa, não nos iludamos, o ponto do qual não se admitirá retrocesso é a tentativa definitiva de retornar às remotas origens cristãs da Igreja Católica, assente numa presença social e comunitária, numa atuação franciscana e numa opção preferencial pelos pobres e marginalizados, visando à reumanização da vida humana com o fim da miséria famélica, da morte antecipada e da luxúria ludibriante do dinheiro.

Portanto, uma coisa é querermos e acreditarmos que este é o ponto a ser (re)alcançado pela Igreja, após tantas décadas (ou séculos?) partidarizada e ensimesmada, e do qual se quer e espera distância.

Outra, todavia, é imaginar que a teologia moral da Igreja será mitigada, tergiversada ou flexibilizada num afã de ganhar insensatos adeptos ou se "modernizar". Afinal, ela existe para indicar um caminho, não para ganhar concurso de popularidade em redes sociais.

A Igreja não fará campanhas pró-camisinha, não admitirá o aborto, não apoiará o casamento gay, não admitirá eutanásia e pena de morte... ao contrário, ela continuará a entender que sexo é amor, que o matrimônio é entre homem e mulher, que a concepção é vida e que o seu fim não é decisão humana. 

Mas isso não impede de que, cristãos ou não, religiosos ou não, discutamos estes assuntos à luz dos fatos e da realidade contemporânea, temperando as conversas com fé e ciências, sem preconceitos e com respeito -- e para as quais se exige novas ações do Estado, atualizando o ordenamento e consolidando políticas públicas afirmativas.

De minha parte, convicções dogmáticas jamais se sustentam em casos de flagrantes absurdos, como são os casos da gravidez por estupro e da demonização de homossexuais. 
 
E estes, por exemplo, são alguns dos pontos a serem alcançados, que distam léguas das trevas da Idade Média.

 
 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

# um vizinho


Hoje fará 6 pm e não verei o meu novo amigo Francisco.

A soar como surreal, este diário encontro me deixou ter com a figura papal uma intimidade ímpar, quase pecadora.

Afinal, desde quinta-feira, dentre outras rotinas passei a ter uma curiosa: antes do pôr-do-sol, vestia-me – sim, o Rio não está só para bermudas –, calçava uns pisantes e atravessava a minha rua para, a poucos metros, chegar à Av. Atlântica e aguardar a visita do Papa.

Voilà, pontualmente às 5:30 da tarde lá estava ele, passando a um braço na minha frente, esguio, em pé e eufórico, com toda aquela simpatia de vovô contador de causos, sábio e sem pressa no mundo, contente por estar ali com a sua gente e com a saúde renovada de um jovem de setenta e seis anos.

Nuns dias mais rápido, noutros bem devagar, noutros com paradas que meu pareceram eternas, em seu papamóvel o meu platônico amigo trazia nos gestos e no olhar um sentimento indescritível de paz, de otimismo e de alegria.

Era como se ele conseguisse olhar profundamente para cada uma da centenas de milhares de pessoas que formavam todo aquele corredor entre o Forte de Copacabana e o Leme e dissesse: "Que bom te ver!".

E ali, naqueles instantes, era como se estivéssemos sendo olhado por ele, numa injeção de sortidos sentimentos do bem que reanima, rejuvenesce e nos enche de vida. Não eram, enfim, apenas acenos e sorrisos.

Eu acredito que Francisco seja um simples homem, humano e especial como cada um de nós.

Mas é um dos homens mais especiais que já vi – e que por alguns dias morou no meu bairro, quase na minha rua, e que vai deixar saudades...


# história em movimento


Posso estar enganado, mas é sempre emocionante ver a história sendo escrita assim, sob os nossos olhos.

Afinal, se é possível ter expectativa em progresso e remoralização da Igreja Católica, este parece ser um momento, uma vez que desde João XXIII (1959-1963) não havia alguém com um discurso tão sincero, tão direto e tão corajoso quanto este de Bergoglio, o Papa Francisco.
 
Mais ainda, desde aquele final dos anos 50 que a Igreja Católica não se deparava com um pastor, um homem que deixa a teologia dogmática para os momentos apropriados – muito diferente do ultrateórico e ultraconservador Ratzinger (o Bento XVI) – e que vem ao povo sem amarras e submissões políticas – muito diferente do marqueteiro reacionário Wojtyla (o João Paulo II).
 
E mais, insiste com um discurso que não se esconde atrás de uma intangibilidade monárquica da Cúria e que não rejeita a maiores vocações cristãs, ou seja, servir e professar a fé, em especial aos pobres e marginalizados.
 
E foi além, não tendo receio em apontar o dedo para um dos grandes equívocos da Igreja, ou seja, a barreira que se impôs diante da sua gente, apontamento este que foi direto, olhos-nos-olhos dos bispos e cardeais da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), em reunião que ocorrera horas antes dele partir e que fora transmitida ao vivo pela televisão.
 
E as posições a serem adotadas foram claras, e as declarações foram fortes.
 
Aqui, em rápidas palavras, se pode perceber que há uma aproximação e um aproveitamento do que a Teologia da Libertação trouxe, construiu e prega (v. aqui, aqui, aqui e aqui), sem precisar renunciar à Igreja e sem ainda causar muita urticária na maioria que ainda crê numa igreja social e libertária incoerente com a doutrina católica e apostólica.
 
(Lembro que a Teologia da Libertação nasce na América Latina dos anos 60, seio da vivência sacerdotal do atual Papa, o qual não fora nada simpático às teses daquela revolucionária escola católica).
 
Ainda que criticando a teologia socializante e do deus ex-machina – tanto quanto criticando a teologia liberal do capitalismo e do deus-dinheiro –, não se pode negar que Papa Francisco quer avançar neste tema e inserir temas sociais na vida e na visão da Cúria e da sociedade católica.
 
Sim, a Igreja não pode ficar longe da Política, não pode se esconder da realidade econômica-social que nos angustia e nos revolta, o que não pode ser confundido com fazer política e partidarismo.
 
Fieis e Igreja não podem fechar os olhos para o mar de injustiças sociais que a toda hora é mostrado, em um selvagem desequilíbrio social que joga na miséria um número cada vez mais de seres humanos, como se meros tijolos fossem.
 
E é deste “humanismo desumano” que o Papa pede atenção.
 
E é contra esta forma de vida, contra a “cultura do provisório” e do curtir o momento que ele pede aos jovens: “Sejam revolucionários!”.
 
E esta frase nunca esteve tão perto daquilo que uma Igreja social e uma teologia da libertação desejam. Nunca este tão próxima de retomar, com afinco e seriedade, o trabalho nas pastorais e nas CEBs, e a atuação no seio das necessidades espirituais e materiais das nossas comunidades.
 
Ora, ficou claro que em um mundo just in time e plugado de novos desafios, paradigmas e aspirações, Francisco é um papa que entendeu o recado que muitos quiseram ignorar ou reinterpretar de acordo com as próprias posições, ou de acordo com as posições que politicamente fossem mais convenientes.
 
Vida longa ao Papa! embora o próprio Francisco não pareça acreditar nisso, haja vista os tantos e seguidos pedidos de oração que faz por si.


domingo, 28 de julho de 2013

# fiat lux


Pela própria identidade radical que as une, a perda de (uma parte de) espaço da Igreja Católica para as tantas Neopentecostais (“evangélicas”) não é fruto dos dogmas ou de visões ultrapassadas de mundo e sociedade.

O negócio é mais simples, como destacou o Papa: a Igreja Católica sucumbe porque some, se esconde, não se estende e não se mostra – v. aqui, um exemplo do resultado disso.

E assim ela tenta se manter apenas com o rótulo da experiência histórica, da tradição milenar como se quisesse dizer, na sua grandiloquência: “Venham vocês ao meu reino!”, e fica trancada, acabrunhada entre-muros paroquiais e assoberbada numa onipotência letárgica e falida.

E ela tenta se contentar para tentar se conter como uma luz maior, e por isso como ente que não quer sujar as mãos e ir às ruas mexer nas feridas.

O problema é que esta luz já não brilha com o vigor que brilhava, inclusive por ter outras com brilhos mais agudos e diferentes que acabam chamando mais a atenção.

Como se não quisesse enfrentar a sociedade – inclusive para evitar discutir as razões dos fatos e acontecimentos passados, que, acredito, podem muito bem ser explicados à luz da história –, prefere recolher-se e evitar a luz do sol.

E o Papa vem sublinhar isso, inclusive no discurso dado aos bispos na Conferência Episcopal Latino-Americana: “Vocês estão errados!”, disse o pontífice, para advertir que é inconcebível que os sacerdotes continuem a trabalhar com “complexo de príncipes”, imersos em luxos descabidos e numa luxúria abjeta.

E mais: lembra que é preciso ir às ruas, que é preciso dar a cara, dar os ouvidos e dar as mãos a toda a gente de quem a Igreja se distanciou.

Sim, porque quem se distanciou foi a Igreja, e não os seus fieis, que de outros modos continuam a crer na Palavra e nos evangelhos.

No centro, de branco, um devoto de São Francisco de Assis


 

sábado, 27 de julho de 2013

# caras-limpas


E em Copacabana espalham-se mais de dois milhões de pessoas.
 
Sem confusão, sem baderna, sem acintes, sem açoites.
 
Sem ódio, sem brigas, sem bate-bocas, sem bate-estacas.
 
Sem putarias, sem lixo, sem luxo, sem refluxos.
 
Pelo contrário, o que se viu foi ordem, educação, respeito, civismo, altruísmo, consciência, peace and love.

Numa primeira impressão acredito ser apenas reflexo da gente que aqui está, do seu comportamento por um grandioso propósito de pura fé e destemor religioso.
 
E depois vejo que tudo isso - em já três dias de concentração absoluta pelas ruas, calçadas e areias - rolou sem uma lata de cerveja, sem uma garrafa de wodka e sem um único tubão de coca com 51.
 
Nesta dúvida de qual seja a premissa - tem este comportamento porque não bebem ou não bebem porque tem este comportamento? -, me veio uma outra questão, talvez ainda mais filosófica e talvez abstraindo-se da sua variável lúdica.
 
Por que e para que bebemos (tanto)?



# atleticania (iii)


Não vi o jogo, mas as resenhas que tive da vitória contra a rebaixada Portuguesa foram terríveis: mesmo não enxugando tão bem, ainda não sobrou nada.

A não ser o que importa: a vitória, que finalmente veio.

E fora de casa, num confronto direto – sim, a nossa meta é não cair –, isto que acabou sobrando foi espetacular, seja ou não obra do acaso.

E pra frente?

Um deus-nos-acuda, com um sistema defensivo terrível e um ataque que erra muito.

E uma única certeza: em breve trocaremos de treinador.

Não é porque acredito em superpoderes de técnicos superespeciais, mas é porque tudo tem um limite.

E Vagner Mancini, com o seu jeitão mezzo contador de microempresa, mezzo churrasqueiro de igreja, não vai resolver nada.

Pelo contrário, quer piorar, a dar créditos a Marcão, entupindo o meio com volantes incapazes até de proteger a cozinha e sempre mexendo mal e porcamente.

E a luz, a única réstia de luz, vem daquele mesmo lugar de sempre: Paulo Baier – a quem, inclusive, cometemos o pecado maior de lhe dar a ridícula camisa 30...

Ora, por mais que defendamos a titularidade do maestro, isto não pode ser encarado com naturalidade ou conforto.

Afinal, o Atlético precisa ser muito maior que isso, inclusive (e minimamente) no campo.

E na prática, nem isso Petraglia consegue enxergar.

Afundado num esquizofrênico discurso de que está tudo muito bem e de que trabalhamos para sermos campeões do Brasil, das Américas, do Mundo e de Grayskull.

Agora só está faltando prometer trazer o Gorpo.



quarta-feira, 17 de julho de 2013

# absolvição


Alguns amigos me advertiram para o fato de que o pecado dos burocratas, relatado aqui, merece absolvição.

Não pela sua imoralidade, é claro, mas pelos ares de legalidade da situação que eu ignorava.

Afinal, o negócio é que realmente foi decretado "feriado municipal" para os dias da Jornada Mundial da Juventude, em alguns deles de forma integral, em outros de forma parcial (v. aqui).

E, conforme portarias dos Governos Estadual e Federal, os feriados declarados em leis municipais devem ser observados pelos órgãos da Administração Pública nas respectivas localidades, sem prejuízo da manutenção dos serviços essenciais de cada área.

Trata-se, portanto, de uma folga legal (sic), que inclusive dispensa a figura eufemística.

E assim está feita a ressalva, que ameniza um pouco o problema e permite a todos passarem a semana de sol na praia com a consciência menos intranquila.

Ou rezando, pedindo perdão por outros pecados.


# pecado burocrata


E agora a visita do Papa.

Sou cristão, católico, apostólico e da teologia da libertação, para confusão de muita gente (v. aqui, aqui, aqui e aqui).

Mas, infelizmente, devo discordar da visita de Sua Santidade, pois a presença em solo carioca (e brasileiro) está a causar o longo tumulto de sempre.

E, para variar, a imoralidade, o desrespeito e o escárnio com o serviço e o dinheiro públicos.

Podem não acreditar, mas na semana da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) os serviços públicos municipal, estadual e federal não-essenciais (sic) estarão fechados no Rio de Janeiro e os seus servidores estarão de “folga” – sim, sem eufemismos, o nome é esse mesmo – pelo período de dois a quatro dias, a depender do caso.

É a baixeza moral, é o descaso republicano, é a absoluta inconsequência dos atos. E, pasmem, justamente neste momento em que parte do mundo foi pra rua detonar tudo o que vem (e sai) do Estado. É, pois, a falta de comprometimento e a falta de noção, que não podem se distanciar muito do comportamento daqueles que usam aviões da FAB para deleite particular, que promovem festas de arromba com o indireto dinheiro público e que se tornam inquilinos de praias públicas para eventos privados.

Mas não para por aqui.

Nesta semana de “autorreclusão burocrática”, vejo o regozijo de quase todos os meus pares diante desta baderna escancarada, lambuzando-se por "se darem bem" com o fato que passam a tratar e nominar de "feriado".

E se não há o regozijo, há a ignorância, encarando com naturalidade o fato de não trabalhar por todo este tempo, com a pseudojustificativa de que a cidade estaria entupida de gente e que ir trabalhar seria dificílimo e improdutivo (sic).

E se não há o regozijo e a ignorância, há o deboche, se segurando na onda de que no Brasil é sempre assim.

É a automutilação, é a autoanulação da sua figura pública e profissional, é como se dissesse: “pois é... bem que dizem que o Estado mínimo é o canal! Eles dizem mesmo que o Estado não serve pra nada, que não funciona! Eles a toda hora falam que o servidor público não gosta e não quer trabalhar! É, e afinal, se eu digo que eu não sirvo, por isso mesmo não poderia estar a serviço de nada...”, e segue a cantilena.

Sim, para alguém que acredita quase dogmaticamente no “Estado máximo” e na absoluta presença e intervenção do Estado na condução das coisas, ouço isso com pesar e revolta, e como algo inadmissível e incompreensível para estes tempos.

Ora, seriam nada menos do que três hipóteses para este caso da visita papal, cujas soluções em nada se parecem com o momento disneylândia que as sessões da tarde e de praia propiciarão em razão da folga concedida.

A primeira é não sediar o evento. Sim, se não há estrutura urbana para isso, não assumamos (v. aqui, quando também envolve outras coisas). Embora diferente do que se passa com a Copa, as Olimpíadas e acontecimentos afins, os poderes públicos também não poderiam concordar com a realização da JMJ no Rio. Logo, que fosse para o Canadá, para a Escandinávia ou para a China – ou, se aqui, para um sertão woodstockiano –, onde os territórios urbanos comportam a movimentação de centenas de milhares de pessoas sem provocar (tanto) caos e desordem; ou, se não-comportável, lá onde o serviço público poderia se dar uma trégua, segurar em casa os seus servidores e parar pelo tempo que bem entenderem, afinal, eles teriam moral e eficiência para tanto.

A segunda hipótese é, se vai sediar, nada mude. Ora, a ampla maioria de quem trabalha não será incomodada pelo fluxo de pessoas, a cidade dispõe de metrô e, ainda, a concentração se dará na Zona Oeste e na Zona Sul, não proibindo o trânsito em outras regiões. Ademais, muito bem se poderia relativizar atrasos ou saídas mais cedo de trabalhadores, se caso fosse.

E a terceira é: vai sediar e vai querer segurar em casa os servidores públicos, que haja uma compensação de horas e que os dias não trabalhados sejam oficialmente repostos, para não se configurar enriquecimento indevido.

Não, não... não pensem que esta última hipótese seria simplesmente óbvia. No serviço público brasileiro nada é óbvio, e o comportamento de servidores públicos brasileiros não é óbvio. E tanto não é que nem esta, e nem as outras duas hipótese, parecem ter sido empenhadas.

É a gula pelo umbigo do gozo de se dar bem, é a preguiça pelo trabalho estatal, é a luxúria pelo momento hedonista da folga, é a inveja por saber que tem gente fazendo igual por poder fazer.

E é a minha "ira", é a minha "vaidade" por ser um dos poucos, ao menos na minha terra, que enxerga isto tudo com um olhar de crítica e repulsa.

Pois é, precisarei do Papa para me confessar  – e dos meus sais para digerir a situação.

 

domingo, 14 de julho de 2013

# atleticania (ii)


Já jogamos como furacão, e já jogamos vazios como o vento.
 
Já jogamos em arenas, estádios, campos e baixadas, e em pocilgas, picos e d´além mar.
 
Já jogamos com noite, sol, chuva e em casamentos de viúva, e já jogamos no frio, sem bodas e como defuntos.

Já jogamos com argentinos, uruguaios e rubro-negros da gema, e já jogamos com múmias peruanas e omeletes suburbanos.

Já jogamos com um camisa dez e mais dez, e já jogamos sem um dez e mais ninguém.

Já jogamos com crioulos cabeludos e polacos com saúde de vaca holandesa, e já jogamos com mamelucos moicanos e mulatos sem raça.

Já jogamos com joões, pedros e josés, e já jogamos só com um paulo. 

Já jogamos com um a mais e que parecia trezentos, e já jogamos com dois a menos e um goleiro de tróia. 

Já jogamos com uma posse de bola barcelonista e fora o chocolate, e já jogamos como reféns taitianos levando fumo sem dó.

Já jogamos metendo bola na trave, no travessão, na forquilha e nas canetas, e já jogamos sem chutar em gol e sem ver a cor do melão.

Já jogamos dando carrinho, dando meia-lua e dando chapéu, e já jogamos minguantes, atropelados por um caminhão.

Já jogamos batendo escanteios, faltas e pênaltis, e já jogamos só batendo o toss e as palmas.

Já jogamos tresnoitado e com bafo-de-onça, e já jogamos depois de uma hibernação polar semivirgem e sem fim.

Já jogamos com técnica, com tática, com beleza, com estrutura e com planejamento, e já jogamos sem rumo e se achando visionários.

Já jogamos valendo o corpo e a alma, e já jogamos velando a alma entregue.

Já jogamos com sangue, suor e lágrimas, e já jogamos só com as lágrimas.

E nestas idas e vindas, e de um jeito ou de outro, para o resultado desta nossa atual relação com os coxas podem dar o nome que quiserem.

Eu chamo de “freguesia”.

 

sábado, 13 de julho de 2013

# mérdicos


E a turma dos médicos, liderada pelo nobre "conselho" da categoria, mostra que não está para brincadeira.
 
Ao menos parte dela, é claro, pois conheço inúmeros profissionais de máxima retidão e caráter que jamais se submeteriam à tal baixeza moral – sim, como os advogados, uma parte sempre se salva.
 
E aqui não estamos a falar de partido, política ou ideologia, mas de ética e cidadania.

Veja aqui, em matéria de hoje do Correio Braziliense, e abaixo, o tom do texto que resume parte da ópera, uma tentativa de mobilizar a massa branca para detonar o programa do Governo Federal e do Ministério da Saúde, o "Mais Médicos", que acaba com a falsa questão colombina para mostrar o óbvio: se algo deve surgir antes, são os médicos, e não equipamentos (v. aqui).


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sexta-feira, 12 de julho de 2013

# causa nossa


E na capa do site de política mais acessado do Brasil – "Conversa Afiada", de Paulo Henrique Amorim –, eis que surge na primeira manchete, em letras gigantes: "Ele descobriu quem roubou o processo da Globo" (v. aqui).

Ele quem, cara-pálida? 

O meu dileto e impoluto amigo (brizolista e flamenguista) Edu Goldenberg, que a partir desta sua ação – ter ido a fundo para desvendar o mistério da dívida fiscal da Rede Globo de mais de 600 milhões de reais que, ops, havia desaparecido... – ajuda a colocar lenha para não deixar apagar a chama que clama pela urgente reforma dos meios de comunicação, pela intervenção no jogo político-econômico dos clãs da imprensa, pelo fim dos oligópolios cruzados...

Enfim, por uma mídia democrática e realmente plural.

Ou vocês acreditam que o ensurdecedor silêncio da grande mídia para o caso, e para o milionário débito tributário, é involuntário?

Ou que esta estrondosa mudez nada tem a ver com o inexistente espaço para uma imprensa nacional de verdade, com a absoluta falta de regras regulatórias e com a cartelização mafiosa dos grandes grupos midiáticos? 

Vir à tona a notícia desta milionária dívida tributária não paga e, pior, do possível aliciamento de uma funcionária pública para sumir com a dívida – ou seria o dono da barraca de churros da Estação da Glória o maior interessado nisso? – , é apenas mais uma rasteira na hipocrisia beata desta paladina da ordem e dos bons costumes (v. aqui).

Mas, enquanto isso, na sala de justiça, o Min. Paulo Bernardo fica meditando, se admirando no reflexo fumê da sua mesa, abraçado às páginas amarelas daquela revista para a qual deu uma recente (e bisonha) entrevista.

E só pensando na morte da bezerra?

Não, não...

Tanto carinho pelas páginas amarelas e tanta devoção à vênus platinada tem um desiderato: ver a sua mulher eleita Governadora do Paraná em 2014.



 

# uivos



E a Presidenta, ainda atada às mãos de um Congresso conservador, corporativo e inativo, e rodeada por uma gente inepta e vacilante, (me) decepciona.

Na coincidente esteira de recentes bulas, eis que se vê, num desastre só, um reflexo da (co)existência das "agências reguladoras" (v. aqui) com o modo de operação da nossa cara "democracia" (v. aqui).

O caso: a nomeação do novo Diretor de Gestão da Agência Nacional de Saúde, um advogado militante na área da saúde suplementar, mui recentemente diretor-jurídico de um dos grandes planos que atuam no Brasil (região Nordeste) e que não simula os seus entendimentos jus-politicos, como se observa da sua passada atuação profissional e de um recente texto seu ("O Julgamento dos Planos de Saúde"), sofrível do ponto de vista científico, no qual acredita que "os prejuízos judiciais estão verdadeiramente ajudando a inviabilizar o mercado da assistência médica privada" (v. aqui).

Já bem se pode imaginar o que virá pela frente em termos normativo-regulamentares, haja vista que o Judiciário, de modo já bastante incisivo, vem acolhendo e dando razão – como não poderia ser diferente – ao consumidor nas demandas judiciais movidas contra os planos de saúde. Agora, portanto, alguém haverá de ceder, sob pena de, atenção, observarmos a bancarrota islandesa das operadoras de planos no Brasil, como alhures se professora para se querer crer.

Ora, ainda que já bem se entenda la raison d'être das "agências reguladoras" – como, incansavelmente, ensinam os Profs. António Avelãs Nunes e Celso Antônio Bandeira de Mello –, haveria um mundo de opções "técnicas" (e, claro, como está na moda dizer, "apolíticas"...) para ocupar um cargo de tamanha importância e que causasse menos desconforto político e menos transtornos econômicos e eleitorais. 

Sim, por toda Oropa, França & Bahia há pessoas que manjam e bem entendem do negócio – tanto quanto o ora nomeado, de quem não se discute os atributos, tão-pouco quem os atribuiu –, mas que não se apresentam tão umbilicalmente ligadas ao business. E eis aqui o busílis da coisa, que evitaria um mar de histórias e premonições de todo os tipos e gostos.

Não custa lembrar, aqui, de um recente estudo a indicar que, em 2010, mais de quarenta operadoras – dentre as quais não está a ex-empregadora do Diretor recém-nomeado –, deram quase R$ 12 milhões para as campanhas políticas, sendo os que mais receberam: PMDB (R$ 3,4 milhões), PSDB (R$ 2,1 milhões) e PT (R$ 1,6 milhão).

Enfim, há situações em que aquela frase clássica merece suprema atenção: “a mulher de César não basta ser honesta, ela tem que parecer honesta”.




quinta-feira, 11 de julho de 2013

# fala que eu te escuto


Milhões e milhões tinham absoluta certeza que a ideia era pura teoria da conspiração.

Ora, você acha que o Tio Sam vai mesmo ficar bisbilhotando urbi et orbi, como se pensasse acima de tudo e de todos, se intrometendo na surdina e preparando o terreno (e as armas) para tomarem as decisões político-econômicas que bem entendam?perguntavam, com aquele sorriso ricardiano (v. aqui).

Sim, achava.

E não era mero instinto, dom premonitório ou neura ideológica – era, apenas, uma séria análise da história combinada com as facilidades e infinitudes que o mundo virtual permite.

Da história, os anos 60 e 70 são absolutamente didáticos para nos mostrar o quanto a América Latina era vigiada (e punida, parodiando Foucault) pelos donos do mundo, com ou sem a subserviência dos mandatários nativos.

Sim, de um lado o “Grande Irmão” mantinha firmes parcerias com as tchurmas verde-oliva nativas que, naquela triste rotina ditatorial de encerar as botas próprias e lamber aquelas estadunidenses, arregaçavam e arreganhavam as soberanias nacionais e a terceirizavam por quaisquer trinta moedas (ou por quaisquer ideologias de araque).

E, de outro, esmerava-se na contratação de serviços secretos, de espiões e de traidores que pudessem passar toda e qualquer informação com o fim de derrubar os governos democráticos e com viés socialista que havia ou que pretendesse haver nas bandas latino-americanas – foi, dentre outras ações, o caso da “Operação Condor”, a qual a cada dia se mostra mais clara e evidente (v. aqui e aqui).

E nenhum evento e momento histórico é mais avassalador do que aquele ocorrido no Chile dos anos 70, quando um coquetel de ódio, ganância e inveja, preparado pelas elites nativas e pelo governo estadunidense, explodiu o país e matou Salvador Allende, cujo drinque da morte lhe foi servido por Augusto Pinochet, seu antigo aliado e Ministro da Defesa.

O golpe no Chile foi daqueles episódios que merecem ser analisados, estudados e vividos diariamente, para jamais esquecer e jamais deixar se repetir: passeatas, greves, boicotes, mídia, especulação financeira, espionagem... enfim, um roteiro arrasador, típico da cinematografia blockbuster do seu coprodutor (EUA). Há, a propósito, um documentário que retrata com absoluta excelência o que foi “A Batalha do Chile”, do início, com o “poder popular”, passando pela “insurreição da burguesia”, até chegar ao “golpe militar” (v. aqui).

E para quem ainda não acredita no que os fantasmas ricos e conservadores dos EUA são capazes de fazer, as cenas dos próximos capítulos devem ser ainda mais esclarecedoras, quando então poderemos ver os segredos de projetos e estratégias do nosso pré-sal, p. ex., revelados.

É, assim, a repetida cara-de-pau de quem quis vestir a carapuça de Big Brother no sistema socialista, pregando pela mundo que a sua terra era a terra da liberdade. 

Ficamos com São Mateus (Mt, 23:27)"Vae vobis scribae et pharisaei hypocritae: quia similes estis sepulchris dealbatis quae aforis parent hominibus speciosa, intus vero plena sunt ossibus mortuorum et omni spurcitia".
 




segunda-feira, 8 de julho de 2013

# atleticania


O Atlético não precisa de um treinador.

Ricardo Mxyzptlkc, Ney, Dorival, Roth, Luxemburgo, Jorginho, Huguinho, Zezinho, o cara da Chapecoense, um cara da base, um cone... enfim, não importa.

O que o Atlético precisa, urgentemente, é de um beque.

Sim, um zagueiro, um quarto-zagueiro, um stopper com pedigree, vacinado, de vitrine, invacilante.

Um senhor zagueiro: altius, citius e fortius, daqueles de garba elegância, daqueles de parar o trânsito, daqueles de pedir fila para autógrafos, de ser jurado em concurso de miss e de ser carregado nos ombros da fanática torcida.

Um daqueles de se pagar dezenas de milhares de reais, dar casa, comida e roupa-lavada, brindar com uma viatura de alto-luxo, charutos cubanos e outros mimos. 

Um daqueles que deixará a cozinha e a ante-sala em ordem e que, ao lado do gigante Manoel, devolverá tranquilidade e segurança ao escrete e garantirá lá atrás os rompantes exitosos da ofensiva rubro-negra.

Enfim, o mundo atleticano por um zagueiro.



sábado, 6 de julho de 2013

# aspas (xxxix)

 

A reportagem da revista "Isto É" desta semana, fundamental e esclarecedora para que todos entendam do problema e das razões que levaram o Governo Federal a tomar as recentes medidas, em parte absolutamente certas e pontuais – e méritos totais ao muito bom Min. Alexandre Padilha –, para enfrentar a questão da saúde pública Brasil afora, nomeadamente a falta de médicos e de cuidados à saúde básica da população, e que tanto desgostou a corporação nativa.
 
Nesta didática matéria está o verdadeiro jornalismo: noticiar o fato, colocar os problemas existentes e as soluções apresentadas e ouvir as partes envolvidas, sem fazer juízo de valor. E assim passamos a ter esperança que de que nem tudo no jornalismo advindo da grande mídia está perdido, e a certeza de que o corporativismo – seja de que classe for, no caso a médica – é mesmo uma praga.

Abaixo, a manchete da boa reportagem, que pode ser lida aqui:

   "O Brasil tem metade dos médicos que precisa.
   Conheça o retrato dramático da saúde pública no Brasil e saiba por que o programa do governo de importação de médicos pode ajudar a resolver esse flagelo".



 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

# memórias de um estudante sem malícias


Em “Memórias de um Sargento de Milícias”, por muito pouco meu reino não ruiu.

E foram estas “memórias” que hoje me vieram à tona, quando, para desasnar, conversava rapidamente com uma amiga sobre literatura, mais precisamente sobre parte da literatura brasileira dos séculos XVIII e XIX.

Inicialmente, uma conclusão já óbvia: por que cargas d´água nós, no auge dos 12 anos, somos obrigados a ler Manuel Antonio de Almeida, Raul Pompéia, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e outras feras, em cujos livros pouco de significativo há para quem (ainda) não quer começar a ter o gosto pela literatura?

E de pronto sempre vem uma contra-pergunta, a afirmar que ninguém nesta fase infanto-juvenil gosta de estudar coisa alguma. Porém, é diferente: aqui temos coisas que se avolumam em duzentas ou trezentas páginas e que se rastejam para se impregnarem em nossas almas por luas e mais luas, quase meses, tudo muito diferente de um estudo com fórmulas químico-físicas, exercícios matemáticos ou curtos contos de história e geografia com começo-meio-fim e que duram alguns parágrafos ou páginas.

Sendo assim, vejamos: o que falar da poesia arcadista a ser decorada em todos os seus quadrantes? E dos parnasianos da gema que nos mandavam ler e a eles nos prostrar?

Ora, a leitura desta nossa antiga e arcaica literatura, quase pré-socrática, parece durar seis vidas, tempo suficiente para quereremos largar tudo e ir direto para o Inferno, ou ir lutar contra moinhos gigantes, ou ir tentar fugir de uma baleia enfurecida, ou quem sabe ir tomar chá com algum chapeleiro tresloucado. No mundo literário, todas estas opções são muito mais gratificantes.

Enquanto a nossa prosa pré-realista jamais conseguirá ser recebida pelos olhos juvenis, o que veio antes dos modernistas também poderia passar sem deixar vestígios. Ouso, inclusive, ser radical e dizer que, não fosse o brilhantismo máximo de Machado de Assis e de mais uns e outros da sua época, o nosso mundo literário iniciar-se-ia com a Semana de Arte Moderna, em cuja contemporaneidade temos a chegada dos nossos grandes gênios de verso e prosa.

Não estamos a exaltar o desconhecimento da nossa história, tão-pouco se trata de uma apologia à ignorância ou uma renegação aos estudos da nossa língua.

Mas, creio eu, se poderia dispensar um aprofundamento impertinente para aquele alucinante momento da vida, cujos efeitos, ainda que num ponto de vida utilitarista, são negativos, pois afasta potenciais leitores da nossa inculta e bela, afasta aqueles que, talvez poucos anos à frente, poderiam mergulhar no passado literário da última flor do lácio sem dor e sem preconceitos.

Foi então que minha amiga trouxe à nossa conversa a obra de Camilo Castelo Branco, escritor lusitano de dois séculos atrás e cujos textos confessei jamais ter lido.

“Relaxe e dispense, não perde nada”, disse ela, com uma segurança ímpar.

Meu mundo, oh, meu mundo por esta frase naquela tarde dos idos de 1985, quando o professor de Língua Portuguesa, ao invés de pular esta fase da literatura – que, é claro, está umbilicalmente relacionada à nossa – e os seus autores, obrigou-nos a leitura e a apresentação de um complexo trabalho daquela obra (resumo, análise dos personagens, aspectos sociais, culturais...) que fala das lembranças e desventuras de um milico de araque.

Era coisa para uma vida, pensava eu. E talvez tenha sido a partir dali meu ressábio quando sujeitos de verde-oliva me aparecem, a carregar o mau-agouro daquele período em que fiquei semanas e semanas trancafiado em meu quarto com aquele livro e com aqueles histórias absolutamente chatas e longas de um sujeito que militava em torno da funesta turma da farda.

Mas não foi este o fato mais significativo daquele momento.

Na verdade, o meu desespero foi ainda maior em razão da certeza que passava a ter: era eu uma besta, um jumento incapaz de compreender uma frase daquele livro se não lida seis vezes, ou um parágrafo se não repetido à exaustão. Confesso que até o título eu tive que ler e reler para sacar.

Assim, desesperava-me o fato de que, dali a poucos meses, não conseguiria traduzir meia-dúzia de vírgulas acerca daquilo que se passava como aquele sujeito naquele Rio de Janeiro quase medieval; angustiava-me a certeza de que não iria enxergar nenhum aspecto – ainda mais "aspectos" das mais variadas estirpes – para relatar; e saíam-me brotoejas por imaginar não conseguir escrever bulhufas de nenhum daqueles toscos personagens.

Impotente em buscar a exegese da obra ou de entender os objetivos do autor, peguntava-me, absoluto: o que serei no futuro, diante de tanta incapacidade de leitura? O que será de mim perante todos os meus colegas, com certeza mais sabichões e que muito bem entenderam as aventuras do sargento e cia?

E passados tantos e tantos dias, e passadas dezenas de folhas de papel-almaço num mequetrefe manuscrito, eis que na véspera da entrega supus finalizar aquilo que mal sabia como tinha começado.

Chegado o dia, adentra o professor em classe.

A sala muda, mas ninguém mais mudo do que eu, numa mudez que chegava a me cegar, impossibilitando-me sequer olhar para o colega ao lado e comparar forma ou tamanho. Era como se eu estivesse num mictório, em repouso e acabrunhado com o momento.

Ele faz a chamada e, ato contínuo, pede para cada um se levantar e deixar o trabalho feito sobre a mesa.

Ele termina a chamada, pega a pilha de trabalhos e passa a chamar um a um para devolvê-los, sem correção, sem contestação, sem comoção – e sem a minha humilhação.

Sim, era um blefe para provar a nossa leitura e os nossos estudos. E passa aquela aula toda, e parte da seguinte, a explicar a obra e seus texto e contextos.

E assim, mais do que aliviado pela minha ignorância ter sido resguardada e rasgada no silêncio da lixeira do pátio externo, vi que talvez eu não era tão asnil assim, pois coisa ou outra até havia captado daquilo tudo. 

Embora ainda hoje continue sem saber: afinal, por que Leonardo-Pataca foi abandonado pela cigana?