à sombra da mangueira imortal
UM ESPAÇO LÍRICO-SIDERAL SOBRE TURFE, UTOPIA, LIVROS, LEIS, NÓS, MARX, FILMES, POEMAS, TORRONES, DRONES, DEUS, DESTILARIAS, EGO, GOLS, FAROESTE, FAZ-DE-CONTA, METAFÍSICA E A VIDA, COMO ELA É...
sexta-feira, 6 de setembro de 2024
terça-feira, 27 de agosto de 2024
quinta-feira, 1 de agosto de 2024
sexta-feira, 19 de julho de 2024
quarta-feira, 27 de dezembro de 2023
# catando conchinhas: ser ou não ser?
terça-feira, 26 de dezembro de 2023
# quase trilogia
domingo, 24 de dezembro de 2023
# verbo: revolucionar
Por estas bandas, e porque estamos nestes tempos, convém lembrar que amanhã é Natal porque convencionou-se como o nascimento de Jesus.
quarta-feira, 6 de dezembro de 2023
# que só tem o sol que a todos cobre
Por que ainda vivemos em um país com índices de desordem relativamente baixos?
Por que não vemos diuturnamente arrastões, avalanches, explosões, sangue e tsunamis de quebradeira e violência pelas praças, praias e pradarias das polis, eminentes sobreviventes dos espaços públicos das nossas cidades?
O olhar e olfato comuns, sob o senso midiático, faz acreditar que estamos todos sofrendo igual.
E, ora, aqui era para ser diferente: isso aqui era para ser muito pior.
Era para ser uma Síria em todos os lugares, uma Faixa de Gaza a todo tempo – e não apenas nas nossas Sírias e Faixas de Gaza de sempre.
Afinal, arromba a retina a brutal e catastrófica desigualdade no Brasil, uma distância medida a anos-luz entre nossos dois mundos, entre as nossas duas cidades-realidades.
Duas sentenças resumem bem este estado de coisas e nos permitem refletir os porquês: primeiro, com Noam Chomsky, quando diz que "a grande maioria da população não sabe o que está acontecendo e sequer sabe que não sabe"; depois, com Leonardo Boff, ao dizer algum tempo atrás que "se os pobres soubessem o que estão preparando para eles, não teríamos ruas suficientes para tanta luta".
De um lado, ricos, brancos e encastelados em uma vida fidalga que vagueia por um consumo hedonista e que se desbunda na busca da maximização da boa vivência, com seus umbigos como centro de tudo.
Do outro, um contingente de pobres e pretos emputecidos com o cotidiano dantesco que margeia a miséria e que faz suar sangue em busca da mínima sobrevivência, umbilicalmente ligados ao nada periférico.
No primeiro Brasil, a nobreza goza um padrão de vida superior ao daquela parte de um planeta em que o padrão é todos terem, a gozar de uma vida cheia, com mais ou menos exageros – esta nossa elite é a máxima elite de países ricos.
No segundo, a malta estropia-se sob uma ordem social semelhante àquela dos parturidos nos bolsões onde o vazio impera e cujos padrões de desprezo e descaso são, sem exagero, simplesmente trágicos – esta nossa gente é aquela gente das regiões mais miseráveis do planeta.
Por isso repito: neste nosso Brasil, uma desigualdade tão atroz e abismal deveria produzir catarses diárias, inconsequentes e revolucionárias, ataques incondicionais e diuturnos, em todo canto e a cada minuto da madrugada.
Por isso não falo desta luta; falo do "caos".
E não de um caos particularizado, daquele no qual está mergulhada a massa brasileira invisibilizada.
Eu falo do amplo e generalizado caos.
Sim, o Brasil seria digno de sofrer sob trevas e escuridão infindáveis (v. aqui).
Afinal, não estamos a tratar de nações uniformemente pobres, igualitariamente miseráveis; somos, ao contrário, a sétima maior economia do mundo na qual pulula uma diferença social avassaladora, uma disparidade econômica ultrajante e uma dessemelhança humana quase pecaminosa.
Em suma, falamos de polos positivo e negativo, de dignidade e indignidade, de tudo e nada convivendo juntos, lado a lado, com poucos choques, com poucos sentimentos e com pouca mescla.
E mesmo assim o Brasil de cartão-postal (ainda) não se vê em frangalhos, não é atingido pela pulsante guerra no seu interior e não revela uma revolta bélica – a não ser o de "classe" – incapaz de aceitar este nosso tradicional estado de coisas.
Bem se sabe que há espaços urbanos onde, tal qual na órbita do grande capital, vigem códigos de conduta e ética de convivência alternativos, sob o império da legalidade à la carte, à mercê de regras e instituições paralelas que fazem destas áreas nossas múltiplas sírias.
Mas, mesmo assim, fora destes outros mundos, no "centro" não se nota a descortinação do Direito.
Não se vê a ameaça constante por parte dos excluídos sobre os superincluídos, não se vê a multiplicação de Robins Hoods do bem e do mal – como aqui lembramos – e não se verifica a atuação costumeira de rebeldes sociais em busca do brioche nosso de cada dia, certamente preocupados em tentar comer as migalhas do pão que o diabo amassou.
E por quê? Por que esta bomba-relógio insiste em não explodir nuclearmente? Qual o freio inibitório desta nossa gente?
Há o argumento "policialesco", pela mais desumana presença da força militar no meio das comunidades pobres miseráveis, que mata para impor uma pseudo-ordem e fantasia uma ordem matando. Uma ordem que aprisiona na ilusão da liberdade e prende a torto e a direito para acabar com sonhos e vidas. Mas será que este medo é suficiente para não encorajar a rebeldia da transgressão, haja vista o que está em jogo para toda a abandonada ralé?
Depois, o argumento "religioso", pela fé divina no comportamento honesto que leva à salvação, ou "bíblico", sob a tese já anunciada no Gênesis, naquele longínquo sexto dia ("e criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou"), e com isso temos visto tudo quanto tinha feito, e com isso tem nos parecido que, apesar de tudo e de todos, é muito bom. Ora, se por um lado muito metafísico para suportar toda a carência real de tantos milhões de cidadãos sem nada e absolutamente entregues à própria sorte nascitura, certamente por outro lado o estratégico papel das igrejas neopentecostais na formação psíquico-ideológica deste gente tem lhes abastecido de esperanças para a realização das suas necessidades físicas, o que lhes exige como contraprestação a cessão do corpo e da alma traduzida em obediência e ordem.
O "familiar"? Talvez, mas, não sejamos ingênuos: como os pais, os filhos e e todos os espíritos de outros exemplos intramuros haveriam de ser páreos para tudo o que se vê ao redor de luxo e luxúria?
O "pessoal" e "histórico-antropológico", ou seja, o ethos assente em proposições como a cordialidade, o adoçamento e outras raízes? Balela, eles até ajudam a esclarecer algumas coisas a partir do ofendido, mas nunca do opressor, basta ver o nosso imenso ranço e amargor de quinhentos anos da mais vil exploração.
O "prático-político", pela própria maneira que os progressistas encaram as potenciais chamas de rebelião, geralmente não participando da organização e contestando parte do repertório mais radical que se costuma adotar em manifestações e mobilizações contra a ordem vigente, e assim freiam uma real escalada do caos, unindo-se à fala conservadora? Talvez.
O "educacional" e "cultural", pela ausência de consciência da sua condição e da realidade nacional, resumida na ideia de alienação que faz deste povo incapaz de compreender a estrutura e as engrenagens da nossa sociedade e de se organizar politicamente, e a partir disse rebelar-se? Sim, mas há tantos outros sítios mundo afora com base educacional-cultural similar mas com outra resposta popular. Ademais, a grande massa não pode ver na educação, no trabalho e na vida obreira dos seus pares fontes (e pontes) para o futuro, muito provavelmente incapazes de tirá-la do chão de miséria, de assegurá-la as mais básicas necessidades e de atender ao consumismo platinado que tanto incita o desejo felino de ter para ser.
O "Estado Democrático de Direito", a "Carta Magna", os "códigos", as "consolidações" e os "comitês" de marchas, sindicatos e circos? Um pouco, um pouco, quase nada.
Mas, além, creio que isso tudo possa estar resumido numa ideia maior, absolutamente abrangente (e talvez simples): a "dominação ideológica" tão enraizada nestes trópicos, na qual o dominado não se vê nessa condição e compartilha da "visão de mundo" do dominador, sublimando a luta de classes para em grande medida fatalizar o futuro, aceitar o presente e naturalizar o passado.
quinta-feira, 29 de junho de 2023
# filho maravilha
Encerrar ciclos sempre machuca um pouco.
É a nossa história sendo passada de página, como capítulos encerrados; porém, diferente de um livro, não se pode mais voltar a ler.
Vamos crescendo, vamos mudando e livros vão se fechando.
E não basta de quando em vez ir à biblioteca para abri-lo, afinal, o tempo não para, nem volta – o que resta são as memórias.
Não tenho da cabeça estes momentos da minha infância, não sei explicar muito bem por onde ficaram ou foram guardadas.
Mas hoje tive a experiência de viver um destes ciclos fechados por alguém tão de mim perto no auge dos seus dez anos.
Era a despedida dele do seu time de futsal, depois de um intenso convívio – praticamente sem falhas, fizesse chuva ou sol, inclusive nos casamentos de espanhol – que lá antes da pandemia se iniciou, depois se interrompeu e durou até hoje.
Durante a semana já sabíamos que esta quarta-feira seria cheia de abraços tristes e boas recordações, ainda mais para ele que explode em sentimentos desta natureza, rememorando cada canto e cada episódio daquele clube e daquela gente.
Antes de entrar no ginásio, bem notei o seu olhar longe e o respirar fundo, parecia também dar piscadelas como discretos acenos ao caminho tantas vezes feito.
Sei que no seu íntimo imaginário infantil também via uma multidão gritando e chorando por ele, agitando lenços brancos de adeus, clamando para que eternamente ficasse.
E eis que ali novamente ele chegou.
Com toda a inspiração, com muito amor e emoção, mostrando como sempre toda sua força e sua raça, fazia mais um dos seus dedicados treinos.
Ocorre que nos instantes finais deste seu último coletivo, quis o destino que ele deixasse o lugar e todo aquele seu pessoal com uma jogada celestial: desarmou antes do meio da quadra, driblou dois, arrancou, deu um toque, driblou o goleiro e, apesar de toda a humildade que lhe caracteriza, entrou com bola e tudo.
Um verdadeiro gol de placa que eu, magnético à beira da quadra, largara as anotações de praxe para aplaudi-lo – e essa foi provavelmente a primeira fez que o fizera, não por falta de seus méritos, mas pela minha rabugice de king richard que insisto transmitir.
Em seguida, o treinador apita o fim do treino.
E ele percebe que acabou.
Ao sair da quadra, vem à minha direção cabisbaixo, com muito suor, com todo o corpo vermelho do sangue ainda bem quente e, sem mais segurar, muitas lágrimas.
Um pranto de quem ali tinha confirmado o encerrar de uma boa fase, de uma agenda atlética divertida e moderadamente descompromissada, mas que dali em diante iria adquirir ares mais sérios num outro clube federado.
Aquilo aconteceria, ele sabia, para então abrir caminho para outras novas coisas acontecerem – é o "ciclo da vida", como um certo leão-rei já desenhou.
Bem, ali não pude lhe dizer mais nada e nem o momento talvez admitisse.
Na saída, apenas agradeci por ser o menino que é.
Um piá por quem diariamente e cada vez mais me encanto.
Que maravilha, filho.
quinta-feira, 22 de junho de 2023
# demasiado humano
Um ótimo texto trouxe, sob o viés jurídico-político, as explicações para a indicação do Presidente Lula do seu advogado particular para a Suprema Corte.
Mas é preciso ter algumas ressalvas e também enxergar por outro plano o fim desta medida: o dever de dizer que "a política venceu".
A política vencer significa, no caso, reescrever mais uma vez que "Lula venceu".
E por ter vencido, Lula pôde escolher o sujeito que processualmente enfrentou o seu maior algoz, aquele cujo sonho, veja só, era justamente ocupar uma das cadeiras do STF, um desejo pelo qual vez literalmente de tudo para tentar realizar.
Principal alvo da bizarra operação Lava-Jato – como as jornadas de junho, não durou 15 dias nas ruas até ser usada como meio de derrubar um partido político –, Lula foi até o fim com esta sua ideia: registrar na história do judiciário brasileiro, de modo definitivo, a derrota do grupo que, por meio do próprio Poder Judiciário, buscava exterminá-lo da vida (pública).
E conseguiu.
E fez isso do modo mais cinematograficamente sádico possível, numa mistura de genial com visceral, de quem tira um sui generis gremlin da cartola (e do fígado). Algo inimaginável há, veja só, seis anos... O tempo voa e a vida sopra tufões que viram de cabeça pra baixo o presente.
Porém, a que custo isso?
A Constituição determina que um membro do STF deve ter ilibada conduta e notório saber jurídico, sendo prerrogativa do Presidente da República indicar o nome a ser referendado pelo Senado.
Convenhamos, mesmo no mundo cinzento e ordinário dos operadores do Direito e apesar do nível desastroso das milhões de faculdades de Direito, não são atributos raros de qualquer cidadão minimamente ético e estudioso dispor.
Agora, porém, Lula perde a oportunidade de marcar esta sua vitória contra os picaretas que o trancafiaram por 580 dias – e que permitiram um tipo anticristo assumir o país por 4 anos –, abrindo mão de indicar outro nome.
Mesmo sabendo das curtas rédeas que a democracia brasileira oferece ao comando do Chefe do Executivo, Lula poderia apresentar um grande nome, indiscutível sob o ponto de vista da ciência do Direito e, mais ainda, da luta política que a aplicação do Direito exige.
Um nome vinculado historicamente à esquerda.
Um nome associado organicamente às lutas sociais.
Um nome impessoalmente ligado à defesa das grandes causas político-constitucionais.
Um nome ligado notoriamente ao pensamento jurídico progressista.
Mas o nome indicado pelo Presidente Lula não parecer dar guarida a tais características. E isso pode, mais ou menos cedo, trazer problemas e prejuízos para quem pretende construir uma sociedade sob uma visão de mundo progressista.
Ora, o indicado Cristiano Zanin em toda a sua histórica discrição – ou quase anonimato? – nunca pareceu e nem se comportou como um homem de esquerda, ostensivamente vinculado às pautas e às raízes da esquerda, do ponto de vista jurídico, político, social, econômico... Zanin, na verdade, simplesmente foi advogado de um homem de centro-esquerda.
Ocorre que a química que forma e fundamenta o mundo e as nossas decisões não dispõe de elementos tão racionais assim.
É uma química que não é ciência exata.
É uma matemática que conta mais com a bílis do que com a métrica juspolítica.
É uma física que faz valer a ideia de que o sabor da vingança move montanhas.
E por isso se compreende a suprema indicação, afinal, Lula é um ser humano.
Humano, demasiado humano.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
# armação ilimitada
quarta-feira, 13 de abril de 2022
# jair, um anticristo
A projeção do
mal sobre um deus, um ser vivo ou um objeto é fenômeno recorrente na
história da humanidade e ainda nos acompanha ao longo da existência, desde a bruxa malvada dos contos de fadas até as interpretações cinematográficas
de personagens demoníacos.
Por isso, na semana mais importante e crucial do ano cristão, carregada de fascinantes simbolismos, é oportuno dizer: Jair dá forma humana ao mal, é um anticristo.
E, atenção, não digo isso como mera retórica, nem figura de linguagem, tão pouco, como precavia Hegel, um exagero no argumento que prejudica a causa.
Logo, no seu mais relevante perfil escatológico, repito que Jair é um anticristo, talvez a forma da fôrma que, por certas horas, Deus considerou ter dado errado, como se diz no Gênesis ("e o Senhor arrepende-se de ter feito o homem na terra").
Não se trata, adiante-se,
de se reconhecer as mais ou menos complexas circunstâncias sociais, políticas e
morais responsáveis pela sua chegada ao poder, até porque há na história diversos
animálculos cujas ideias, discursos e ações dignificam minimamente o ser humano; aqui,
pois, diríamos que o minúsculo ser aparece com outra essência, como se adotasse a
fantasia vermiforme para ocultar aquela imagem tão decantada pelo cristianismo:
a besta chifrada.
Como se sabe, a figura do anticristo não é singular.
Ela está em uma categoria de pessoas que se extasiam ao provocar a desgraça, o medo, a iniquidade, a coisificação e a desolação.
O anticristo nega o Pai, o Filho e o espírito que era o Verbo e a Verdade, que sempre divinizou a vida, que ressignificou a paz, que enalteceu a partilha e o perdão, que pontificou a fraternidade e a igualdade, que engrandeceu a Terra e que priorizou pobres e marginalizados.
Cá entre nós, lutas contra anticristos fictícios, metafísicos ou de carne e osso são frequentes na história, desde priscas eras, opondo ao mal valores fundamentais como a paz e o amor.
E hoje a figura do anticristo é a concretização da anticivilização.
Como tal, é um contraponto a elementos – ideias, indivíduos, projetos – considerados absolutamente perversos, nocivos e disruptivos à sociedade, esteja ela em níveis maiores ou menores de ordem e de progresso.
Não por outra razão, o enquadramento moral e (sobre)natural de Jair como um anticristo poderia ser provado por inúmeros gestos e palavras, atos e omissões, no passado e no presente, de maior ou menor gravidade, de ampla ou restrita repercussão, nos mais diversos aspectos da nossa existência.
Jair é um anticristo porque despreza a vida. Ora, que outro sujeito estimula o contágio por um vírus pandêmico em tamanho grau? Quem caçoa o pesar e a tristeza pela perda de mais seiscentas mil pessoas, achando tudo irrelevante? Quem mais acredita no extermínio de diferentes como saída política e de paz social? Quem sacraliza a tortura, faz das prisões um altar e da violência miliciano-policial motivo de devoção? Quem faz com tanta graça e júbilo a apologia da barbárie e do horror cotidianos, como se numa roleta de bem-me-quer e malmequer?
Jair é um anticristo porque despreza a paz. Ora, quem usa armas como símbolo cotidiano, a todo instante trazendo falas e movimentos bélicos de ódio e guerra? Qual sujeito estimula a prática constante da violência, o uso amplo e irrestrito de armamentos e de todo um arsenal como sinal de vitória? Quem rotineiramente ousaria pegar na mão de crianças para fazer sinal de armas e tiros? Qual o indivíduo que gargalha o riso diabólico ao publicar suas taras com rifles, pistolas e quejandos? Quem fala em metralhar e fuzilar como se fossem verbos de uma gramática natural?
Jair é um anticristo porque despreza a compaixão. Afinal, quem mais encarna a crueldade no ato de, ao contrário, desdenhar do outro? Jair é incapaz de sofrer o sofrimento do outro, de se colocar na vida e realidade sofredora do outro, por qualquer que seja essa dor: a morte, a doença, a fome, o desabrigo, o desemprego... Assim, Jair não nutre qualquer "paixão com" o outro; ao contrário, goza da malignidade e da perversão em um dia a dia de todos contra todos, sob o imperativo moral de cada um por si (e o mal por todos), abdicando do aspecto essencial da natureza humana, ou seja, a necessidade de um relacionamento amoroso com os outros.
Jair é um anticristo porque despreza a verdade. Mentiroso contumaz, faz da patranha um modo de vida. Engana e ludibria sobre tudo e todos, sobretudo os mais carentes de tempo e cognição. Estelionatário da fé pública, decreta sigilo de cem anos em assuntos de interesse público para ocultar a realidade. Mente por todos os lados, como se uma ilha da falsidade onde a verdade não entra para não poder ser conhecida, acorrentando na inverdade seu séquito mais fiel e ignorante.
Jair é um anticristo porque despreza a igualdade, a solidariedade e a comunhão. Dia e noite ele preconiza o anti-igualitarismo, fazendo do país uma sopa de merda, pus e fel. Se não ele, que outro indivíduo seria capaz de, em décadas de atividade política, jamais ter sequer mencionado o mais grave problema social, a concentração de riqueza? Qual sujeito seria tão capaz de agir em prol do racismo, da fome, da seca, do trabalho infantil e da deseducação pública, causas profundas da desigualdade social? Que outro indivíduo revelaria tanta falta de empatia, de sensibilidade e de compreensão dos problemas sociais, senão pode deliberada opção e vontade? Quem mais glorifica o egoísmo do "cada um por si" travestido de liberdade e celebra o individualismo amoral segregante e socialmente desarmônico, frutos da visão narcísica do sujeito "em-si-mesmo-sem-o-outro"?
Jair é um
anticristo porque despreza o meio-ambiente, o lugar onde vivemos. A Terra é a
nossa casa, e a nossa terra é a nossa sala, um lugar avassaladoramente devastado
para uma boiada poder passar e pastar. Quem mais desregulamenta, flexibiliza,
despenaliza, liberaliza e privatiza toda uma agenda ambiental, sob a sanha de
fazer da ecologia um tema ideológico e da natureza um espaço propício à destruição,
ao desmatamento, ao garimpo, à monocultura, ao latifúndio... como se numa medieval cruzada
antiambiental?
Jair é um anticristo porque despreza os fracos, as minorias e os oprimidos. Como um "homem da inequidade", lambuza-se ao ver o desemprego e o desespero de sem-teto e sem-terra, ofendendo a doutrina social do Papa Francisco presente em sua encíclica Fratelli tutti: “terra, teto e trabalho”. Não exalta os humilhados, mas humilha as pessoas fora das normas binárias de gênero e sexo e as comunidades indígenas e quilombolas. Faz da mulher um objeto adâmico, compreende a luta do povo negro como choro de perdedor e entusiasma-se com suas próprias palavras: as minorias devem se enquadrar à sua visão de mundo – ou então desaparecer.
Jair é um anticristo porque despreza a família. Ora, quem mais desconhece o espírito familiar senão um sujeito que propaga a idealização de uma família erguida sobre um moralismo de quinta-categoria que não se sustenta à brisa da manhã porque repleto de múltiplas transgressões? Quem é o sujeito que faz dos filhos projetos vis de homem e cidadão, construídos à sua imagem e semelhança? Quem mais faz das ex-mulheres um harém de negociatas e túmulos vivos de histórias que vão de aborto a traições? Qual sujeito cerca a sua gente de tanta gente sem virtudes e integridade, sempre sob o culto da "tradição"?
Jair é um anticristo porque despreza as relações humanas e políticas. Quem reiteradamente exalta uma antipolítica que ignora o debate de ideias, a oitiva de opiniões e o respeito às ciências como se fosse onisciente e onipotente? Qual o sujeito que ignora as fronteiras do público e do privado, do justo e do injusto, do certo e do errado em benefício exclusivo dos seus pares? Quem como nunca militariza e policia todo um aparato republicano como fetiche de forte apache? Quem mais desconhece qualquer caráter e pudor para se assumir como um avatar trágico e cruel das elites que liquidam o Brasil, senão um sujeito cuja essência é anticrística?
Enfim, Jair é um anticristo porque encarna o espectro do mal em sua totalidade, em cada um dos relacionamentos, dos atos e das palavras que estabelece e promove na sua trajetória de vida.
Para além da sua concretude social e política, objetivamente manifestada, tamanha consciência para degradar a existência humana é resultado de quem vive o mal como categoria moral, arquétipo de um agente desumanizado que vagueia no infértil campo do ódio.
Sim, nele há a prática do mal
intencional, radical, torpe e profundo, símbolo da força e da energia que negam o evangelho de
Cristo.
E é preciso um basta, um expurgo das ações, das palavras e do pensamento que carregam a mensagem das sombras, da desgraça e do caos.
Afinal, como se disse, tirar Jair
do poder não será apenas um ato político – será um redentor ato de amor.
terça-feira, 24 de agosto de 2021
# e la nave va
Deixo a seguir o posfácio da obra.
E LA NAVE VA
(POSFÁCIO)
Em outubro de 2018 – dois meses após a defesa em banca examinadora da tese de doutorado da qual este livro é fruto – a nossa distopia sopra ares surreais ao ver eleita presidente uma aberração saída dos grotões do baixo clero parlamentar e saudada nos porões da ditadura cívico-militar.
Bizarramente, pelos próximos quatro anos a República seria ocupada por um dublê de abantesma obsessor: “lasciate ogni speranza, voi ch'entrate”, passaria a ser gravado nas areias do litoral da Bahia para quem aqui desembarcasse.
À sombra desta assombração arregimentou-se grande parte da elite brasileira, disposta a articular (e distorcer) aquele protesto popular em prol dos seus interesses, a fim de manter benefícios e privilégios ainda que sob um cenário de guerra, em uma terra que hoje – mais do que nunca – condensa táticas de faroeste, técnicas de manicômio, taras de ditadura e totens eugênicos com vistas a dizimar os dispensáveis da razão neoliberal desta ordem capitalista.
A mudança na dialética social do Brasil – que
perpassa pela religiosidade neopentecostal, a
desconstrução do operariado sindical, a fetichização dos costumes, os valores
liberais não identitários e a reorganização urbana da periferia –
traduziu-se em um “fenômeno epidemiológico” que saiu das redes sociais e contagiou
as urnas, assinalando o estado da nossa decadência moral e política e,
principalmente, o ressentimento desesperado da massa brasileira que naquela
imagem de meganha tosco e boquirroto imaginava um “mito”.
Neste processo, a classe dos “intocáveis”
sempre fingiu isenção, admitindo as trevas de algo tipo governo: inepto e
indecente, armado e desalmado, capenga e enjambrado, sem luz e sem lógica
democrática, sem programas e sem propósito social, tudo num planalto cujo
cenário associaria o astral de banheiro químico com a graça de uma necrópole.
Fingiu eximição, admitindo um modelo de
sociedade baseado na precariedade, na expropriação e na violência oficial,
objeto da conjugação infausta de neoliberalismo com submilitarismo.
Fingiu sublimação, admitindo viver no fio da
navalha do obscurantismo regido pelas vontades de uma gente perigosamente
medíocre e enfaticamente lunática cujo método é a mentira e cuja bússola, o
ódio.
Fingiu esperança, admitindo ver o caos
institucional e o colapso socioeconômico, sem ordem e sem progresso, sem ações
e sem recursos, sem vida e sem negócios.
Fingiu. E finge. Finge sob as máscaras
venezianas de quem parece desfilar em seu próprio e seleto carnaval, como sói
acontecer com os brancos e azedos malandros da contemporaneidade.
Notoriamente, a “aliança siamesa” entre
endinheirados e empoderados de novo revela a plena disposição que as nossas
elites têm, histérica e historicamente, em não medir esforços para ofuscar a
realidade e dissimular as causas e as razões da desgraça brasileira que longe
passam da “corrupção” da (e na) política, canto medúsico soprado pelo bando que
deslavava a jato o Direito e que diariamente ecoava pelos jornais nacionais até
chegar aos ouvidos mais incautos e menos conscientes da população.
Ainda, as últimas eleições criminalizaram em grau máximo a política para
legitimar um sujeito que passaria a exercer o papel de “antipresidente”,
cultivando a mais carcomida política, vinculada a todos os vícios e fraudes que
há séculos o Brasil produz e no qual uma seleta casta eterniza-se em leito
esplêndido ou nas varandas da casa-grande enquanto invisibiliza a usurpação das
riquezas nacionais, a manipulação do mercado e, fundamentalmente, a exploração
do trabalho.
Eis a plutocracia brasileira, que se alvoroça
em torno do seu títere de ocasião não para domesticá-lo, mas para que áreas
caras aos seus interesses sejam cuidadas sob um novo arranjo normativo, na
forma de um tratamento à terra, à educação, à saúde, às relações de trabalho, à
infraestrutura, ao meio-ambiente, às empresas públicas, aos pequenos negócios e
aos movimentos sociais que unem o medieval ao neoliberal e o selvagem ao
mafioso, arruinando toda uma agenda tão sensível à maioria da população.
Assim, o horror da desigualdade social – que
em 2016 retomara o crescimento de forma calculada e acelerada – imediatamente
transformou-se em uma “não-pauta”, absolutamente abandonada da selvagem agenda
do presidente eleito, não apenas como sinal do seu déficit
humano-civilizacional, mas como resposta ao desejo da elite brasileira de
conservar o seu colossal quinhão da renda e da riqueza nacionais como uma eterna
capitania hereditária: o “orçamento público”, máquina da qual brotam inúmeros mecanismos de apropriação de dinheiro público – via,
especialmente, aprimorados ardis financeiros e bancários – de forma a
continuamente renovar o processo de dominação.
A caracterizar universalmente o país como o
samba e o futebol, a desigualdade volta a ser relativizada sob falácias
liberais e ordens de ajuda motivacionais que enviesam a análise do problema de
modo a ofuscar o lado perverso desta equação brasileira, crescentemente
concentrado no topo piramidal do reino social, efeitos
naturais de um sistema que manifesta seus sintomas de morbidez e decrepitude cujas
consequências são escancaradas no dia a dia das nossas cidades.
Enquanto aos ricos (e ao
capital) dia a dia são atribuídas feições heroicas e vitoriosas, seja pelos
holofotes da grande mídia, seja em declarações oficiais de um obnóxio governo
que almeja ser bem falado nos “clubes de golfe”, escondem-se as reais
circunstâncias estruturais do subdesenvolvimento e do empobrecimento geral, a
fim de que não se conheçam as razões institucionais e ideológicas da guetização
de um povo esfacelado.
E justamente nesta estética
de zoológico rural e lógica de desordem e retrocesso que caracteriza o momento
brasileiro, em 2020 o nosso pandemônio coroa-se com uma “pandemia” cujo maior
reflexo é a morte a quilo dos supérfluos humanos – a maioria das nossas
periferias –, sinal macabro da vilania debochada e também do desprezo à nossa
questão central: a desigualdade social que avisa e determina quem são as nossas
grandes vítimas, mero detalhe para a necropolítica e eterno normal para o
capitalismo como legítima expressão da barbárie.
E o tempo passa... e ao fundo um rinoceronte enfaixado segue sendo
alimentado por nossos barões enquanto bizarramente capitaneia o barco Brasil
nesta travessia infernal, com salva-vidas cuidadosamente selados para muito
poucos. Até quando?
Rodrigo Gava
Copacabana,
Rio de Janeiro