terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

# biópsia


De simples fruto da observação e sem qualquer real propósito empírico, aqui se desenha um pequeno balanço estatístico-comportamental da Administração Pública brasileira.

Um micro-diagnóstico do que nela se passa, um provocativo breviário do raio-x de toda a gente que recheia unidades, órgãos e departamentos públicos país adentro.

Fruto da minha experiência, em contas simples, há cinco grupos que se dividem nas seguintes porções: 4% (I), 36% (II), 10% (III), 20% (IV) e 30% (V).

Evidentemente, é possível ver misturas, blends, associações, intersecções e, claro, intensa flexibilidade entre os conjuntos, afinal, tudo é bastante dinâmico (e nada científico).

E, claro, pode não passar de um especulativa balanço  o que não deixa de ser um propósito.

Mas, a priori, temos este cenário.

Uma minoria, uma miniminoria, um percentual mínimo de servidores públicos é picareta, bandido, ladrão, salafrário e canalha (I).

Mas é uma parcela muito forte e intensa no sentido estrutural, pois se trata de gente graúda, com poder de decisão e com sólida retaguarda, o que acarreta em grandes barreiras para o nosso desenvolvimento institucional e gerencial.

É uma gente concentrada nos cargos em comissão e, em especial, nas funções de confiança, ou seja, naquelas que afastam a necessidade de concurso público  fazem e atuam, pois, conforme a cartilha dos seus superiores, sem alma (e colhão) para fazer nada diferente

É uma gente podre, vil, sustentada pelos interesses privados e orgulhosa de vender a alma para levar seus filhos à Disney, de posar em colunas sociais e de se comportar como fidalgos republicanos.

Fingida, dissimulada e arraigada nos intestinos do poder, se vê abençoada pela grande mídia e privilegiada por um Poder Judiciário lento e leviano.

Aqui, pois, está o arrenegado, o atentado, o azucrim, o bode-preto, o cão-miúdo, o capiroto, o dianho, a serpente maldita, lado a lado com as suas almas-gêmeas escondidas no "mercado" (v. aqui) e em parte do terceiro setor (v. aqui).

Depois, aquela grande maioria que é honesta  o problema é que uma metade desta maioria não quer muita coisa com o batente (II).

Pois é, a maioria da maioria quer sombra e água fresca, ou foi colocada e amarrada nelas. 

Faz o básico e trabalha no limite do necessário: horários padrões, dia a dia padrão, eficiência padrão, efetividade padrão, números padrões, comportamento padrão... não à toa, é o que se costuma chamar de "servidor público padrão".

Não se envolve, não se deixa envolver, foge do embate, foge de compromissos, foge de qualquer coisa que o faz suar e pensar par além do que julga ser o necessário.

Fez lá um concurso, acomodou-se e agora só quer saber das aulas de flauta, das sessões de terapia, dos cursos e cultos, do parque dos príncipes, das massagens linfáticas... enfim, da vida fora e bem longe dali.

É uma gente que sempre tangencia com a desídia, com o descaso e com outras atitudes com potencial desvio ético, mas, assegurada na lei, vê simplesmente seu umbigo como esteio e seu contracheque como fim.

Todavia, uma importante ressalva seja feita.

Afinal, uma considerável parte destas pessoas assim age (e é) não pelas razões acima, mas por culpa do próprio "sistema", que as deixa propositadamente de lado, não a quer presente, viva e atuante  pois ela incomodaria o modus operandi... –, e com isso desestimula a ponto de praticamente matá-la no trabalho, e por isso ela fica ali, murcha, infértil, fazendo o tosco serviço básico que lhe empurram, junto com a tal sombra e a (contaminada) água fresca.

Em suma, um comportamento que, em ambos os lados da moeda, pode levar o serviço público à falência, como qualquer ente cujos atores (colaboradores e trabalhadores) assim atuem, e que por isso requer tratamento, cura e transformação.

Eis, aqui, o câncer da Administração.

Ainda, na outra metade da ampla maioria que não é criminosa, o bolo divide-se em três: a turma trabalhadora e eficiente, num pedaço maior, a turma incompetente e asinina, num menor, e a turma vadia e indecente, na fatia que sobra.

Vamos por partes.

Este menor grupo, dos servidores errantes, não chega a ser demonizado porque a sua falta de compromisso não condena o caminhar público-administrativo e os seus desvios não envolvem grana e o saque do erário (III).

Vadios, ostentam gracejos, distribuem licenças médicas aos borbotões, perambulam à toa e costumam não esconder que não querem nada com nada.

São, em regra, pessoas aprovadas em concursos toscos, com cargos microscópios e funções pouco significativas, na iminência de partirem de onde estão para melhor, sabe-se lá qual seja e onde esse esteja.

Ou, então, estão ali alojadas em confiança por favores políticos, apadrinhamentos pessoais ou coisas do tipo, para muito pouco fazer a não ser pedir as devidas bençãos ao final de cada mês.

Representam o aspecto jocoso do aparato público nacional, dignos de pena  e asco, claro.

À frente, há o contumaz rol das bestas quadradas (IV).

É um contingente pesado, um fardo enfadonho e que requer atenção, paciência e grande esforço altruísta no ambiente de trabalho.

Há na turma aquele pessoal que entra na "cota de comissão", que para nada serve e é entregue por padrinhos, de bandeja, para alocação em algum departamento ou órgão, a dissimular algum comprometimento.

Porém, o grosso não em desta banda, mas, sim, esta gente é fruto de concursos mal-feitos, de impertinências legislativas que não permitem à Administração melhor recrutar profissionais para compor seus quadros ou de um medíocre e materialmente nulo processo de avaliação de desempenho, que insiste em não existir pra valer para, assim, servir de bimbo à manutenção da trupe incompetente – aqui, pois, jaz um grande nó a ser desatado e bem estudado pelo Estado.

São convocados para cargos de gestão sem nunca geriram nada, para cargos de alto nível sem efetivamente possuírem experiência alguma e para cargos técnicos com minguada bagagem científica; e, apesar de tudo isso, são mantidos nos mesmos, intocáveis e estabilizados, como se imortais.

E, por sinal, é aqui que também pode se encaixar aquele mar de pós-adolescente, pois saem do mundo das apostilas, dos códigos e dos cursinhos e caem nesta vida sem a menor noção do que ela é, a funcionar como ricos trainees às custas do capital público.

Resumidamente, este conjunto pode evoluir, tem potencial, pois costuma ter boa vontade e até permitir criar expectativas de progredir e ajudar no serviço público.

Mas, ainda que assim se mostrem, irritam demais, pois sempre empacam.

Formam, assim, o corpo público dos cabaços e das múmias paralíticas.

Por fim, a massa que segura e sustenta a Administração Pública brasileira (V).

Bem, esta não é merecedora de maiores detalhes, tão-pouco de uma extensa resenha.

Mergulha no dia a dia do trabalho, dedica-se à melhor solução dos problemas, pensa diuturnamente no desenvolvimento e execução das atividades, age para além do regimento programado, não suporta o comodismo e o ranço histórico do serviço público, não se comporta aos mandamentos pré-jurássicos da ordem e da carreira estatal e rejeita explícita e exemplarmente o bando infausto dos outros grupos.

Não é infalível, não é imaculada e não é sobrenatural  é, apenas, honesta, séria, competente, especializada, trabalhadora e intelectualmente dedicada.

Perfaz a cabeça, o tronco e os membros da máquina executiva do Estado.

São, em suma, as andorinhas que fazem os nossos verões.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

# aspas (xlvii)



Esse homem não pode ser candidato

A receita do impeachment secou no forno tucano.

A crise mundial escancarou a fraude que atribuía ao PT o desmanche do Brasil.

Dilma afrouxou a camisa de força do arrocho com dano inferior ao imaginado.

A reativação do CDES mostrou que é possível arrastar uma parte expressiva do PIB para fora do golpe.

Não é o único broto da frente política necessária à superação da encruzilhada do desenvolvimento, mas é um passo na retomada da iniciativa para além da defensiva e da prostração.

O que sobrou ao golpismo, então?

Sobrou a última carta na mesa: decidir 2018 em 2016.

Significa matar, picar, salgar, espalhar partes do carisma e da credibilidade de Lula pelas ruas, praças, vilas, periferias, vizinhanças e campos de todo o país.

“Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de vencer; se vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande governo.”

Essa é a versão de hoje para o que dizia Lacerda em junho de 1950, quando tentava igualmente abortar a candidatura de Vargas à presidência da República: ‘Esse homem não pode ser candidato; se candidato não pode ser eleito; se eleito não deve tomar posse; se tomar posse não deve governar’.

A caçada a Lula ganhou a velocidade vertiginosa da urgência conservadora que manda às favas o pudor e as aparências.

É preciso capturar essa presa antes que ela retome o fôlego e o fôlego tome as ruas.

Vale tudo.

Não é força de expressão.

É o nome da pauta interativa que conectou as redações a um pedaço do judiciário.

De onde virá a pá de cal?

Do sítio-pesqueiro que ele frequenta? Da canoa de alumínio de R$ 4 mil reais? Do apartamento que, afinal, não comprou? De um delator desesperado? De alguém coagido pela República do Paraná, disposto a qualquer coisa para proteger familiares retidos e ameaçados?

Eles não vão parar.

A Lava Jato escuda-se em razão meritória para agir como braço partidário.

O golpismo os incentiva, a mídia sanciona e se lambuza.

Desfrutáveis rapazes e moças denominados ‘jornalistas investigativos’ inscrevem-se nas mais diferentes façanhas para antecipar o desfecho, antes que alguma resistência aborte o cronograma.

A piada venezuelana sobre a escassez de pasta de dente, divulgada como noticia pelo UOL, mostra a tensão reinante entre rigor e furor.

A mesma sofreguidão fez a ênfase do delator Paulo Roberto Costa em inocentar Marcelo Odebrecht transformar-se em sutil incriminação do empresário na degravação para Moro.

‘Isso não vem ao caso’ – diria FHC.

Nenhum caso vem ao caso quando associa tucanos a eventos em que o interesse público se subordina ao apetite privado.

Procuradores procuram –produzem?-- febrilmente a pauta da semana, auxiliados por redações interativas.

A narrativa geral é adaptada ao sotaque de cada público. Desde a mais crua, tipo JN, às colunas especializadas em conspirar com afetação pretensamente macroeconômica ou jurídica.

A mensagem vibra a contagem regressiva em direção a ‘ele’.

‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço central da parede onde já figuram outras peças preciosas, embalsamadas pela taxidermia conservadora.

A sentença de morte política foi lavrada em 2005/06, quando se concluiu que pela via eleitoral Lula seria imbatível diante das opções disponíveis.

A partir de então seu entorno e depois o seu próprio pescoço seriam espremidos num garrote que range as derradeiras voltas do parafuso vil.

O assalto final será indolor à matilha?

Eis a pergunta política de resposta mais cobiçada nos dias que correm.

Depende muito do discernimento das lideranças nascidas dessa costela, e até mesmo –ou quem sabe, principalmente-  de algumas referenciadas a marcos históricos que vão além dela.

São hoje as mais mobilizadas.

Amanhã serão as primeiras atingidas, se a ‘macrização’ do Brasil for bem sucedida.

Acuado como está e limitado pelo erro histórico de um ciclo que promoveu a mobilidade social sem correspondente organização política, Lula é refém da avaliação que o conjunto da esquerda fizer de sua importância para o futuro da democracia social no país.

É tão ou mais refém disso do que do sentenciamento conservador. Neste já foi condenado.

Mas a rua pode salvá-lo.

Só as ruas.

“Ah, mas Lula foi ultrapassado pelo avanço da luta popular?”

É um paradoxo: se avançamos tanto, como é que eles estão em sulforosa ofensiva por ar, terra e mar?

“Culpa do PT.”

Na Venezuela também? Na Argentina, na Europa...?

Há uma recidiva da crise mundial, cuja extensão e profundidade o PT subestimou.

O mundo vai murchar com a desalavancagem global de múltiplas bolhas perfuradas agora pela freada chinesa.

Estamos a bordo de um acirramento da disputa pelo bolo mais magro urbis et orbi.

Nada isenta o PT e o governo dos equívocos sabidos, que o tornaram mais vulneráveis nesse momento.

O embate, porém, vai muito além do que imagina o bisturi que resume a equação histórica a lancetar o espaço do PT na trincheira progressista.

Em Portugal, uma esquerda que conseguiu maioria parlamentar, acaba de perder no primeiro turno presidencial para a direita.

A esquerda portuguesa resolveu ir para as urnas dividida.

Cada qual inebriada de sua autossuficiência para enfrentar a desordem mundial do capitalismo.

Como pretendemos caminhar para 2018?

A pergunta vale para o governo, para o PT e para as forças que legitimamente se evocam à esquerda do PT.

O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda.

Foi inconcluso porque atribuiu às gôndolas do supermercado a tarefa de promover o salto de consciência que mudaria a correlação de força no país.

A inclusão foi tão expressiva, porém, que sob a cortina de fogo impiedosa do monopólio midiático, há quase uma década, acuado, ferido, enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome que parte com 25% dos votos nas sondagens da nova corrida presidencial.

Aécio e Marina, teoricamente o suplantariam numa quase certa aliança no segundo turno.

Mas a direita sabe que não é bem assim.

Com acesso diário à tevê que hoje lhe é sonegada, ao rádio e ao debate num cenário econômico que dificilmente será tão ruim quanto o atual, as alardeadas dianteiras dos seus principais adversários podem derreter junto com o ‘crime’ de frequentar um pesqueiro em Atibaia, com a canoa de preço equivalente ao de uma carretilha das disponíveis nos iates de alguns de seus críticos, e com o ‘tríplex’ que, afinal, não lhe pertence.

Por isso é preciso liquidar a fatura agora, na janela de oportunidade entre o vácuo orgânico da militância e a incerteza relativa a 2018.

Em 1954, quando a direita já escalava as grades do Catete e os jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que rodeasse Vargas, a sua morte política  era comemorada por parte da esquerda.

O varguismo era acusado de ser um corredor aberto ao imperialismo, um manipulador das massas.

Vargas não era um bolchevique.

Tampouco detinha a representação de São Francisco de Assis na terra.

Era um estancieiro.

Não fez a reforma agrária. Nunca viveu agruras, não liderou greves, não leu Marx –perseguiu marxistas no seu primeiro governo.

Ao mesmo tempo, criou o salário mínimo, as leis trabalhistas, peitou o imperialismo...

Vargas foi o que são líderes nacionais populares de cada tempo concreto: seres contraditórios de carne e osso, exatamente por isso magnéticos na personificação de um projeto de desenvolvimento em que o vórtice selvagem do capital passa a ser domado pelas rédeas dos interesses sociais organizados.

Vem de Varoufakis, o ex-ministro da Fazenda da Grécia, a preciosa síntese do que está em jogo num mundo que é o avesso disso, capturado pela desregulação dos mercados: ‘Não deixar nenhuma zona livre de democracia’.

Até onde a sociedade pode ir por esse caminho? Até onde a correlação de forças permitir a democratização de todas as instâncias de poder na sociedade.

Lula tem seu espaço nesse enredo.

Em abril de 1953 uma parte da esquerda brasileira considerava que Vargas não tinha mais.

Simultaneamente uma ciranda de ataques descomprometidos de qualquer outra lógica que não a derrubada de um projeto de desenvolvimento soberano sacudia o entorno do governo que criara a Petrobras, o BNDES e uma política de fortalecimento do mercado interno com forte incremento do salário mínimo.

O clima pesado das acusações e ofensas pessoais atingia Getúlio e sua família de forma virulenta.

Lutero, irmão do Presidente, era seviciado  por manchetes garrafais que o tratavam como ‘bastardo’ e "ladrão".

A imagem veiculada do ministro do Trabalho, João Goulart, era a de um cafajeste, um "personagem de boate".

Lembra algo?

A dramaticidade do suicídio político mais devastador da história iluminaria o discernimento popular gerando revolta diante do ódio golpista que tirou a vida de Vargas.

Porta-vozes da oposição a Getúlio foram escorraçados nas ruas do Rio; uma multidão consternada e enfurecida cercou e depredou a rádio Globo que saiu do ar; veículos da família Marinho foram caçados, tombados, queimados nas ruas da cidade.

Para Carlos Lacerda não sobrou um centímetro de chão firme: o "Corvo" foi recolhido a bordo do cruzador Barroso, distante da costa.

A esquerda que dispensava a Vargas o tratamento dado a um cachorro morto, teve que reinventar a sua agenda com a bicicleta andando.

Quase sessenta e dois anos depois do tiro que sacudiu o país, a pressão atual do cerco conservador permite aquilatar a virulência daquele período.

O Brasil está de novo sob o tropel da mesma cavalaria.

Com os mesmos cascos escoiceando a nação e reputações.

O mesmo arsenal para alvos e objetivos correlatos.

No julgamento do chamado 'mensalão', o sociólogo Marcos Coimbra, presidente do Instituto de Pesquisas Vox Populi,  mensurou um pedaço da artilharia conservadora voltada contra o discernimento da sociedade.

Em apenas quatro semanas até 13 de agosto de 2012, 65 mil textos foram publicados na imprensa atacando o PT, Lula e o seu governo.

"No Jornal Nacional, para cada 10 segundos de cobertura neutra houve cerca de 1,5 segundos negativos”.

Nas rádios, conectadas pela propriedade cruzada aos mesmos núcleos emissores, a pregação incessante era e ainda é mais abusada.

A mesma elasticidade ética reveste a ação da mídia determinada a calafetar cada poro do país  com uma gosma de nojo e prostração.

Persiste, enfim, o cerco ao Catete.

A qualquer Catete dentro do qual políticas públicas tenham buscado pavimentar mais um trecho da estrada inconclusa que leva à construção de uma democracia social na AL.

Desta vez não haverá tiro para alertar a esquerda brasileira.

Mas caberá a ela escrever a carta testamento para explicar o Brasil deixado aos que vierem depois de nós.