terça-feira, 31 de maio de 2016

# imortais



Já no prelo como tema de um artigo científico que finalizo ("A fatídica imortalidade no serviço público – uma reconfiguração do regime de trabalho do servidor público"), não me furto a aqui apresentá-lo, merecedor de séria reflexão: a revisão deste modelo de estabilidade do servidor público.

É evidente que tivemos avanços com a Emenda Constitucional nº 19/98, a inserir na nossa Carta Maior o principio da "eficiência" e a admitir a expurgação de servidores públicos estáveis em casos de "mau desempenho".

Mas ainda é muito pouco.

Primeiro, pela péssima qualidade das avaliações periódicas de performance promovidas pela Administração Pública país afora.

Na verdade, não se está a "avaliar", mas simplesmente a se justificar o desempenho.

Ora, e aqui não sejamos ingênuos: dificilmente a coisa irá andar, pois há pouco interesse em se levar adiante um negócio muito sério e comprometido com os princípios da melhor gestão, sob pena de ser autofágico – sim, a turma teme armar a própria arapuca.

Depois, pela fragilidade de se sustentar os critérios exoneratórios adotados em uma demanda judicial, uma vez que o Judiciário costuma, pelo ranço conservador que lhe caracteriza, não admitir exonerações com base – mais ou menos frágil – na má (ou na não) apresentação de resultados pelo profissional estatal.

E por isso a necessidade de se rediscutir até que ponto a estabilidade é salutar para o Estado, para o funcionamento da máquina pública e para a boa prestação do serviço público, como aqui já colocamos.

É evidente que não se admite um "modelo privado" nas relações de trabalho entre Estado e servidor, com a mera dispensa ad nutum, típica também dos cargos em comissão.

Seria um perigo enorme, pois se teria, a cada eleição, um desmonte nas carreiras e o desfazimento de todo o aparato funcional em prol de conveniências partidárias e arrumações políticas.

A demissão privatista não valeria, também, pela simples razão de que inibiria denúncias, restringiria objeções e censuraria críticas, esvaziando o melhor ambiente corporativo estatal ou blindando-o com o lado negro da força.

Portanto, não é este o caminho.

Todavia, insiste-se, deixar como está não é lógico, não é legal, não é moral.

E engorda, incha-se sem retorno e sem valor.

E pelos cantos e rebarbas da máquina pública acaba-se criando foie gras de tatus.

Conheço e sei de inúmeras exceções – emocionam-me até, e é verdade. 

Mas uma considerável massa insiste em querer formar um bolo embatumado, indigesto, azedo.

Ela não se empenha, ela não se dedica, ela não mergulha, ela não quer saber de outra coisa a não ser a grana, a sombra e a rasa água fresca da vida fora das quatro linhas.

Ela não enxerga muito sentido naquilo que faz, ela não acredita no que faz, ela não faz mais do que lhe apraz, ela se perde na eternidade da sua desfeita posição, sem prazer.

Ela precisa, enfim, ser posta à prova, ela precisa sentir que arde, ela precisa acreditar no fim e no seu fim.

Ela precisa perceber que o papo de ser eficiente, eficaz e efetiva, de fazer acontecer, de vestir e suar a camisa não é mera retórica de livros de auto-ajuda ou de lunáticos leninistas simpáticos a uma vida estatizante.

Ela deve, pois, entender que não mudando, não se dedicando e não se repensando estará fora, na rua.

Ora, ninguém pode entrar num lugar e saber que por lá ficará durante toda uma vida, intocável, impávido e colosso, salvo, apenas, se for provado (muito bem provado) que roubou a cântaros, que matou o colega com rituais satânicos ou que sumiu por uns doze anos em pescarias na Sumatra, tudo passado em cartório e assinado pelo deus do departamento.

Por isso, e a cada dia mais, parece-me que um modelo híbrido, que comungue regras das leis dos trabalhos "estatutário", "temporário" e "celetista", seja a melhor construção.

Em linhas muito gerais: contratos de trabalho, frutos de concurso público, com direitos e obrigações muito claros, renováveis por “n” vezes mediante um processo de avaliação de desempenho meticuloso e dinâmico – eis de novo o problema, mas que ao menos não esbarrará na potencial perenidade do sujeito no cargo e na evitação da autofagia –, com direito a FGTS e INSS diferenciados, regrado com remuneração e jornadas flexíveis e mesclado com incrementos sociais categorizados e negociados via sindicatos.

E o próprio Poder Judiciário controlaria os excessos, nos termos do contrato e dos motivos determinantes da exoneração, como hoje já o faz, mas sem as amarras da quase eternidade funcional.

Não é simples assim, é claro.

Mas o "simples" é continuar aceitando a atualidade atroz que faz tanta gente ingrata e imerecida ficar perpetuamente no Estado.

E isso não mais se sustenta, sob pena de se construir ambientes criogênicos na gestão pública.

Ou de se ter descoberto uma espécie de "pedra filosofal" para deleite de alguns.