terça-feira, 27 de janeiro de 2015

# pronome de (des)tratamento



À época do voluntário exílio europeu, lia nos raros momentos de folga acadêmica, sob a luz amarela e fria das lindas bibliotecas, clássicos -- ou parte deles -- que noutros tempos era-me impossível.

E desses período trago agora o filósofo Hegel, que em sua Fenomenologia do Espírito examinou amiúde a dialética do senhor e do escravo.

Nessa obra, aprende-se que o senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o escravo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de escravidão.

Em tantas oportunidades e ocasiões da vida, diversas pessoas (e diversas colegas) assim parecem se comportar, atribuindo a imerecidas pessoas o respeito de um tratamento senhorial ou pseudo-acadêmico que, inconscientemente, as escraviza.

E no ambiente de trabalho isso a todo instante vejo acontecer -- e como perturba a vulgarização já histórica do "doutor".

Assim, muitas vezes vejo as pessoas constrangidas, estampando nas oprimidas testas uma virtual placa que as submetem, a cada indevida pronúncia de "doutor" ou "senhor", ao contexto senhorio.

Sim, como disse Leonardo Boff, esta conduta resulta do fato do oprimido admitir hospedar em si o opressor.

E, neste microcosmo da vida, a libertação  realiza-se quando o oprimido extrojeta o opressor, não mais admitindo servi-lo e não mais aceitando servir-se com tratamentos indevidos.

Portanto, ao menos nesses inconcebíveis termos de um "senhor" ou, pior ainda, de um "doutor", devem as pessoas terem a consciência de que ambas as formas são absolutamente indignas e ilegítimas para certas pessoas que, pela notória falta de caráter -- tenha ou não uma merecida idade avançada -- ou de honra acadêmica, não podem fazer jus a nada além de um comum "você".

Afinal, infelizmente, para esses casos ainda se desconhece um pronome de destratamento.



 

# verdade, caminho e vida

 
 
Pelo Brasil a fé move montanhas de dinheiro, levado por um rebanho perdido no mar da ignorância e do desespero.
 
Antes, uma contestação: as igrejas neopentecostais têm uma papel importantíssimo no resgate da dignidade da nossa ralé e na recuperação dos abandonados de toda sorte – sem almejar um mais profundo juízo de valor, trata-se de um fato inegável que as qualificam nesta ordem social vigente e as credenciam a continuar os seus trabalhos.

Continuemos.


Para a lei não há milagres, afinal, o que não pode ser observado e explicado racionalmente não interessa à lei; contudo, isso não quer dizer que religião e crença não sejam importantes para a lei.


E a tênue linha que separa liberdade religiosa e laicização, de um lado, e má-fé e crime, de outro, provoca atritos e sublime discussão.


E não sejamos injustos: desde sempre a religião têm margeado por este segundo plano, a adotar inúmeros meios indignos de coletar fiéis.


Antes, nos tempos medievais, a Igreja Católica vendia terreno no céu, queimava "bruxas" e usava de toda a maldita criatividade para embutir na cabeça das pessoas que fora dela, e da submissão a ela, não havia salvação.


Mas, hoje, com a evolução social da (pós-)modernidade, bem aliada a toda a tecnologia midiática à disposição, as ideias que flertam com o absurdo, com o intragável e com o crime são sorrateiramente atacadas.


Há índia em Santa Catarina, há médiuns em Minas Gerais e, claro, há padrecos  e pastores por todos os centros e cantos deste país.


Basta, pois, correr pela rede para ver isso aqui, aqui ou aquie ter a (apriorística) certeza de que essas coisas não podem passar impunes por uma sociedade que se pretende justa e tutora da dignidade humana.


Bem, há dois artigos no Código Penal que indiretamente lidam com a exploração da fé das pessoas, catalogados no capítulo dos crimes contra a saúde pública.

O primeiro é o charlatanismo, uma espécie de mentira utilizando a crença do outro, na qual o criminoso inculca ou anuncia cura por meio secreto ou infalível.


É claro que simplesmente dizer que você pode curar alguém não é crime (se fosse, todos os médicos estariam presos); m
as dizer ou propagandear que a cura é infalível ou que você possui um meio secreto de curar as pessoas é crime.

O que se exige, pois, é que o "charlatão" saiba que ele não será capaz de curar a pessoa, que seu método não seja eficaz ou, ainda que eficaz, não gere cura garantida.

O segundo, o curandeirismo, que é diagnosticar, receitar, entregar ao consumo ou aplicar qualquer substância ou usar gestos, palavras ou qualquer outro meio de cura para tratar a doença de alguém – a
qui, o "curandeiro" efetivamente não sabe o que faz, diferente do "charlatão".

Ainda mais do que o primeiro, este segundo crime é muito complexo porque tangencia na liberdade religiosa.


A benção do padre, por exemplo, é uma forma de cura espiritual para os fiéis, como o uso das mãos é importante para os espíritas, as saudações e convenções para os muçulmanos, judeus, budistas, hindus... e até mesmo certos chás são sagrados para outros (v. aqui
 ou seja, usar gestos, palavras e meios diversos são veículos que quase todas as religiões ou seitas fazem.

Isso quer dizer que esses religiosos estão exercendo o curandeirismo? 
Não, na medida em que a Constituição protege os rituais de fé.

O limite – complicado, confesse-se – é quando esse ritual de fé passa a colocar a saúde (física, mental, social e financeira) das pessoas em perigo.


E o caso de quem pratica operações espirituais? Pode sim ser crime contra a saúde pública – tratar alguém com gestos, palavras ou, no que se encaixa, "qualquer outro meio” –, mas há quem discorde e entenda ser apenas lesão corporal, por admitir que as cirurgias mediúnicas não são similares a gesto ou palavra.


E se a pessoa está usando a prática criminosa para também tirar proveito econômico das vítimas? O "charlatão" ou "curandeiro" também comete estelionato, pois obtém, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento
.

Entretanto, de modo a manter a ordem constitucional que prevê a inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença e que assegura, como direito fundamental, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, são apenas nestes (extremos) casos que, com farto arcabouço probatório, o Ministério Público poderá intervir e resguardar o interesse público.

Fora isso, resta-nos a educação e a informação, pilares para o desenvolvimento intelectual, moral e, porque não, também espiritual da nossa sociedade.

Eis, pois, o caminho não metafísico da vida.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

# maus selvagens

 

E os EUA, hein?
 
Liderando este projeto de civilização – ou a falta dela... segundo Lênin, era esse inclusive o fator impeditivo para a revolução bolchevique avançar ao socialismo que tem as 85 pessoas mais ricas do mundo com uma riqueza equivalente a de outras 3,5 bilhões (v. aqui), o dono da bola não anda nada bem.
 
Por quê?
 
Ora, um país cuja sociedade sustenta-se nos fundamentos do individualismo – em afronta a um princípio republicano, a "solidariedade", conforme tese doutoral do amigo Guilherme Massaú –, do consumo e da busca incondicional de status não deveria ter mesmo condições de, a longo prazo, funcionar.

E, por isso, com o vertiginoso aumento da concentração de renda e da imobilidade social, visiona-se o rompimento de qualquer sentido lógico na sacrossanta ideia de "meritocracia" – porquanto efetivamente seletiva, mística e lotérica, enfim um fetiche –, motivo pelo qual os novos americanos (e parte do mundo) já contestam o autoproclamado "paraíso" e a ultradivulgada "terra das oportunidades", agora referenciada como "pura selvageria" (v. aqui).


Desemprego (v. aqui) e desigualdade (v. aqui), food stamps e homeless (v. aqui e aqui), temas que a cada dia fazem mais parte do cotidiano estadunidense, vão tornando-o progressivamente mais cruel e intragável. 


Ademais, não se precisa, de novo, fazer maiores relatos sobre o sistema de saúde ou a frugalidade das políticas sociais yankees, tão-pouco o que e como se educa no seu ensino médio e fundamental 
– estas são políticas sem retorno, sem lucro, sem chances de merecerem atenção.

Muito diferente do que acontece, por exemplo, no sistema universitário, cujo exitoso modelo sustenta-se num brain drain e cujos investimentos maximizam-se porque se justificam na elevada rentabilidade que oferece – basta ver que os EUA ainda são o país detentor do maior capital tecnológico e do maior número de patentes registradas do planeta; a
ssim como a disseminação da sua cultura do lixo e do efêmero e a intervenção (ou, ao menos, a intromissão) politico-militar em qualquer rincão do mundo, ações que catapultam o poder e as finanças da turma de bilionários nativos. 

Para fechar, a inabalável neoliberalização da economia, com o rei mercado na titularidade do caos absoluto (v. aqui), sem retorno social e sem relevo público.


E assim, por estas e outras, o pesadelo americano vem se tornando insustentável também internamente: não há mais qualquer leveza no afã patriótico dos filhos órfãos da América.


Na última eleição para Prefeito de Nova York, a voz dos esquecidos pelo jeito clássico de se fazer política – os quase 50% que lá vivem ao redor da pobreza e à margem da res publica – finalmente fez-se valer para eleger um candidato democrata com a seguinte plataforma de governo: combater a desigualdade social (v. aqui).


Como? O vencedor, Bill de Blasio, dá um dos caminho: aumentar os impostos dos ricos, desmiserabilizando a gigante periferia da cidade.


Se até lá isso é (retoricamente) óbvio, como pode o nosso Congresso Nacional não evoluir na regulamentação do constitucionalizado "imposto sobre grandes fortunas" e não ter dado continuidade com a CPMF (v. aqui e aqui)? Como pode o nosso Governo ainda não ter revisto esta aberrante política de juros em prol do capital vadio e de poucos?


Bem, para isso não precisamos clamar a explicação de Freud.

Mas, quanto às razões do animal estadunidense ainda ser um modelinho fantasiado de bon sauvage pela grande mídia brasileira, aí só ele explica.



Eis um vídeo que prova a excelência meritocrática estadunidense


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

# sem fetiches



Vamos direto a um ponto.

Tratam-se de duas premissas que dispõe de intransigente verdade: os anos dourados do capitalismo (pós-Segunda Guerra até os anos 70) foram a exceção histórica e nesse sistema a progressão geométrica da desigualdade é fruto certo, inquebrantável, inabalável, implacável, inflexível.

A desigualdade é a sua condição, a sua predicação e a sua indefectível consequência.

A desigualdade é a sua razão de ser, existir, sobreviver e se reproduzir, motivo pela qual é nas entranhas do capitalismo, no mínimo, que se deve mexer, cutucar, futucar, longe daquelas cantilenas de "reformas" ou "choques" que a nada servem, senão para a manutenção do status quo.

Em termos matemáticos é tudo muito simples: historicamente, a taxa de crescimento econômico  sempre foi (e será) inferior à taxa de retorno (o "rendimento do capital"), como já cansou de explicar o Prof. Avelãs Nunes, o que conduz, a longo prazo, no próprio declínio do crescimento econômico. 


Em outras palavras, o economista francês Thomas Piketty em seu best-seller, por exemplo, torna-se celebridade universal por atacar de frente a ideia de que a distribuição da riqueza econômica é secundária à criação da mesma, em balizada crítica aos ortodoxos e à turma do laissez faire

Ora, segundo a "The Economist", hoje 1% da população tem 43% dos ativos do mundo e os 10% mais ricos detém 83% de tudo  tolerância essa ainda subsistida na (vã) esperança que todos ainda têm de enriquecerem, tal qual era a ideia-fetiche do sonho americano (v. aqui e aqui) e da tal meritocracia (v. aqui, aquiaqui).

Mas, se mudar as estruturas do poder não parece tarefa factível neste sistema, enfocar o tema tributário e a reconstrução jurídica de certos institutos podem ser bons remédios.


Desde logo, portanto, há três ações que devam merecer a mais urgente atenção e a mais premente colocação prática: (i) imposto sobre grandes fortunas, (ii) contribuição provisória sobre movimentação financeira e, principalmente, (iii) revisão e tributação dos direitos hereditários.

A primeira, até na nossa Constituição já está; agora, tirar do texto constitucional e colocar o "imposto sobre grandes fortunas" (IGF) no dia a dia, ainda exige muitas "coligações", muitas "alianças", muito "fisiologismo" e muita "articulação política" para se ter muita "maioria" e, pois, "governabilidade"  eis a atual via sacra para se ter o comando e tomar qualquer atitude política.

Ou, para uma atitude política transformadora, poderíamos dizer que só se exigiria um bom aparato midiático para se ter o apoio popular concentrado no pulso forte da(o) mandatária(o), e voilà

Bem, passado isso, e fixado e regulamentado o tributo, bastaria ter o apoio do Supremo Tribunal Federal para que, nas ações judiciais que advierem, ele oferecesse um sentido progressista e republicano ao conceito de "confiscatório", longe do ideário retrógrado que lhe caracteriza.

Afinal, meus senhores, não tenhamos dúvidas: qualquer alíquota, ou faixa de alíquotas, contará com o grito supremo da nossa massa bem cheirosa, impávida diante de qualquer redistribuição ou reconfiguração fiscal, odiosa perante medidas que visem, de verdade, alterar a nossa realidade.

Mas, não se pode esquecer que, para ter utilidade, o IGF deve pegar na veia, não deve mirar as alturas e simplesmente focar em meia dúzia de Tio Patinhas; ora, em um país tão, tão, tão desigual como o nosso, não fica difícil ver que "grandes fortunas" não são fortunas de tantos zeros assim, que deixe lépida e fagueira toda uma franja perversa que recrudesce o núcleo da desigualdade.

Por isso, taxar a "riqueza"  o capital (!) , e não a renda, é condição elementar para que se reestruture a sociedade.

Em seguida, o resgate de um tributo aos moldes da "contribuição provisória sobre movimentação financeira" (CPMF), cujo fim -- obviamente -- não produziu a alardeada redução de preços para os consumidores, tão-pouco maior eficiência mercantil. 

Ao contrário do que bradava o núcleo conservador, os preços permaneceram os mesmos e, ipso facto, apenas fizeram aumentar o lucro das indústrias e empresas (v. aqui).

Logo, e isso já se sabia, os únicos beneficiados com a derrubada da CPMF foram os grandes conglomerados econômicos – e a chusma criminosa de plantão, com suas lavagens, sonegações e coisas que o valham – que tanto lutaram por isso, por meio das suas bancadas no Congresso e a turma da oposição. 

Enfim, deste único tributo ao qual ninguém que se enquadrasse na condição de sujeito passivo podia escapar, duas conclusões óbvias podem ser tiradas: o que contribuía para o financiamento da saúde, da previdência e da assistência social, agora, é do lucro privado; e o que antes era para rastrear e punir a ação de bandidos, agora ajuda a escondê-los.

Depois, urge a necessidade da herança ser verdadeiramente tributada e dos seus direitos  serem reconfigurados.


O primeiro caminho é bastante simples: aumentar a alíquota sobre o imposto da transmissão de herança (ITCMD), de competência dos Estados.

No Brasil, há um limite esdrúxulo de cobrança igual de 8%; porém, a média desta alíquota entre os Estados tributantes é ainda mais esdrúxula: não chega a 4% dos bens envolvidos -- mundo afora, a média supera os 30% (v. aqui).

O motivo de termos tão baixa alíquota é elementar, afinal, quem tem (muita) herança pra transmitir nesta terra e a quem interessa mantê-la tão baixa (e evitar tanta tributação)? Ora, é outro imposto de rico, sobre rico e para ricos.

E não se venha com o blá-blá-blá de que aqui já se paga altos tributos etc., pois, fora a Escandinávia, todos os países desenvolvidos do planeta -- cujo sistema fiscal dispõe de elevadas alíquotas -- tributam a herança em mais de 40% (v. aqui)!

O segundo caminho, claro, é mais difícil, a exigir emenda constitucional; porém, ainda mais difícil é continuar a enfrentar este ultrajante modelo em que se perpetua riquezas sem produção, em que se multiplica renda sem trabalho, em que se eternizam condições sem contraprestações.

E, mais do que tudo, em que se fulminam as oportunidades sociais pelo mero acaso do nascimento.

O conservadorismo institucional que nega todas as fórmulas inovadoras, evidentemente gosta de rechaçar este plano de um novo modelo de herança, denominado "herança social". 

Essa herança social é definida, nas palavras de Mangabeira Unger, professor de Harvard, como "contas sociais", estabelecidas pela sociedade em nome de cada indivíduo e que deveriam substituir progressivamente a herança privada

Uma parcela dessas contas representaria pretensões incondicionais oponíveis ao Estado para a satisfação de necessidades mínimas e universais; outra, seria adequada às circunstâncias individuais, minimamente estabelecidas em lei; e outra ainda poderia ser concedida como uma recompensa por potencial comprovado ou realizações.

Assim, uma parte destes novos direitos fixar-se-ia na provisão de serviços por um aparato público unitário, no modelo tradicional do Estado de bem-estar; outra parte, resultaria em pontos a serem gastos pelo indivíduo, por sua própria vontade ou com a aprovação de curadores, entre prestadores de serviço concorrentes. 

Os propósitos principais de tais "contas" seriam a educação e o capital produtivo (trabalho). 


A educação orientada para a aquisição de habilidades práticas e conceituais e que continuasse durante toda uma vida ativa, com a escola assumindo a sua missão precípua de resgatar a criança de sua família, sua classe, seu país, seu período histórico e mesmo da sua personalidade, e de prover-lhe acesso a experiência desconhecida (v. aqui). 

O trabalho como meio para o capital produtivo, idealizador da transformação social, familiar e pessoal, receptador dos frutos amealhados por particulares por convenções jurídico-institucionais  (a herança), herdadas da sociedade – da conformação social  e sob a tutela do Estado, agora reinvestidos em proveito também da própria coletividade.

Enfim, passos em cuja direção pode-se vislumbrar potencial de alguma "justiça social" advinda do indócil e inexpugnável capitalismo.

E tudo, claro, sem fetiches.



 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

# uma vontade de chorar

 
 
As lágrimas são muito mais que fluidos que brotam de glândulas por meio de canais e canalículos como resposta do sistema límbico.
 
Chorar é o transpirar da alma, é enxaguar o rosto de sentimentos que nos inundam de amor (ou das tristezas do amor).
 
Hoje chorei a "despedida", aquele facão que de tempos em tempos decepa as nossas raízes para nos mandar para longe, como se capturados pelas mãos cruéis do destino (v. aqui).
 
Porém, mais do que o meu pé calejado de espinhos frente às mudanças, chorei o choro dos meus dois pequenos filhos, deixando a casa dos meus pais e o convívio com toda a família por mais de dois meses.
 
Chorei o choro que eles não choram porque ainda desconhecem a saudade.
 
Não conseguem medir a pausa daquele dia a dia com o avô, as avós, as tias e as primas.
 
E como desconhecem o tempo, parecem não sentir a falta do amanhã.
 
Vivem o hoje, e apenas embaixo do consciente é que devem guardar o cotidiano mágico de todas estas semanas -- e, lá na frente, um dia quem sabe, resgatam-no de uma memória bisbilhotada, numa roda de um churrasco de domingo já sem graça.
 
Agora, portanto, certamente estão longe de entenderem o que significa uma casa de vó, a farra do furdunço em família e a fortuna da farta felicidade com todos na velha casa, como aqui lembramos.
 
Contudo, diante destes meses todos uma coisa não tenho dúvida: do jeitinho mais ou menos silencioso deles bem compreenderam o sentido do "amor total".
 
E por isso as minhas lágrimas, que tanto demoraram pra secar.
 
Afinal, sei bem a falta que aquela casa fará na vida deles.

E a falta que eles farão a ela.



quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

# desaniversários


 
Na clássica obra de Lewis Carroll, o Chapeleiro Maluco ensina à Alice que ali no País das Maravilhas o que importava eram as festas de desaniversário.
 
Sim, comemoravam-se todos os dias (e não-dias), festejavam-se as bonanças diariamente, a cada roda de vinte e quatro horas se podia erguer um brinde qualquer à vida.
 
Não se esperava, pois, completar o tal ano para se acender velas. Eis a lição: o dia a dia não precisa esperar um dia determinado para merecer a celebração.
 
Na expectativa de se fecharem ciclos -- como a conclusão de doze meses --, prolonga-se e adia-se os momentos de efusividade, aguardando-se um dia oito de janeiro qualquer para solenizar as bendições da vida.
 
Como numa estranha e desmedida simbologia, reverenciar aquela tarde de um outono de abril parece pouco significativa diante do acontecimento pré-fixado, lá naquele nascimento, que insiste em colar pelo fim do seu tempo.
 
E assim várias das lembranças só teimam em vir nestes dias, as ações e reações só insistem em surgir com os seus típicos ares de esquisita espontaneidade nestas noites.
 
É como se o antes e o depois fossem meros coadjuvantes para o "hoje".
 
Mas este hoje, com o sombrio gesto de apagar as velas, morre, vira ontem.
 
E lá se vai outro período em que se incuba a felicidade de se homenagear a vida, chocando-a doze meses até o próximo bisado parabéns.
 
Velho, cada vez mais velho, aguarda-se a passagem circular dos ponteiros para bater palmas, em bigs ou pics que soam eternos, num ritmo contrário à lógica do universo.
 
Neste caminhar, tudo amadurece, envilece, amarela, engorda -- tudo torna o bolo figura caricata do seu próprio estado físico-anímico.
 
Mais ainda, com a rigidez do dia D, um sofrimento atroz desembarca para atacar e mortificar a memória trazida de quem se foi, fixando-se eternamente um dia para se lamentar a sentida ausência.
 
Ou, mesmo de quem ainda não se foi, pensar na singularidade de um aniversário machuca a solidão de quem, justamente naquela hora, resta exilado.
 
Ingrata, a data não se preocupa em distribuir ao longo da jornada o que de bom ou ruim lembramos.
 
Não, tudo fica ali, guardado, esperando, esperando, esperando... até explodir, na desordem caótica da nossa existência relojeira.
 
Em todo este contexto, portanto, a verdade que tenho é que fazer aniversário uma vez por ano é pouco.
 
Ou muito, a depender do momento etário.
 
Contudo, prefiro ainda acreditar na primeira versão: não se deveria esperar tanto para se festejar tanto.
 
Um viva, pois, ao desaniversário nosso de cada dia.
 
 
 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

# eu não sou charlie



Vários dos sujeitos que produziam o panfleto intitulado "Charlie Hebdo" foram vítimas de brutal morticínio na manhã de hoje -- v. aquiaqui e aqui.

Obviamente, rechaça-se com veemência a violência, o modo máximo de censura e, pois, a atitude extrema dos muçulmanos acusados da autoria dos crimes -- ainda que paire dúvidas nisso (Al Qaeda?!), tamanho o avanço da ultradireita xenófoba e racista europeia que, disposta a tudo, muito colherá do episódio.

Absolutamente execrável, afinal, nada justifica desconsiderar o supremo direito à vida em nome seja lá de quem (e do que) for.

Nenhum dos artistas mereceu levar tiros. Ninguém, ninguém merece morrer. 

Entretanto, o que significa e quais os limites da tal "liberdade de expressão" (e "de imprensa")? 

Claro que isso conduz ao dilema sobre se há e quais seriam os limites da arte: a tipologia penal? A arquitetura social? As circunstâncias ideológicas? 

Não se irá muito à frente, contudo.

O limite aqui é o fato em si.

A que ponto os tais cartunistas satíricos, os desenhistas cômicos e os desbocados e destemidos jornalistas podem ir para alcançar a sua fama, a sua grana e a sua "liberdade"?

A que ponto qualquer um de nós pode chegar na sociedade propagando mensagens no mais baixo nível da chacota, do abjeto e, sim, do ódio, do "ódio a quem tem uma religião"?

A que ponto a religião, assente em dogmas e paixões divinais dos seres humanos, pode ser objeto do mais flagrante desrespeito e da mais profunda humilhação alheia?

Não sei se respondem a alguma ou a muitas ações judiciais, mas, quem se importa, se tais "artistas", mesmo usando palavras e desenhos que ofendiam meio mundo -- tudo em prol de uma onisciência ocidental e dos seus superiores valores --, continuavam dispondo de muita mídia e de muitos anunciantes? Sabe-se bem, esta é uma tática velha e conhecida, inclusive por aqui muito abusada.

É claro que pagar com a própria vida não tem cabimento, mas a turma do "Charlie Hebdo" -- e qualquer um -- não tem o direito de expor ao planeta afora mensagens expressas, diretas e exclamativas que soam como um "fascismo às avessas", desgraçando a fé de bilhões em prol de um fanatismo ateu.

Será que é aceitável desenhar judeus esquálidos em fila indiana a caminho de um forno de pizza?

Será que é aceitável desenhar Deus levando uma cenoura no traseiro, em tom de galhofa e com uma mensagem engraçadinha ao lado? Ou Jesus Cristo, ou Nossa Senhora, sob as mais baixas cenas e os mais vis diálogos? (v. aqui ou aqui)

Será que é aceitável desenhar Alá sendo estuprado por um camelo, com uma legenda estúpida embaixo? Ou Maomé pelado, de quatro e sob as mais torpes piadas? (v. aqui)

Será que tudo isso é aceitável sem se atropelar os direitos humanos, o direito humano à fé? 

Será que um cristão fanático ou um judeu ortodoxo também aceita isso tudo que o bando do jornal francês babaca vem criando? Finge aceitar? A que preço?

Enfim, o contexto todo torna muito complexa a reflexão e a análise, muito longe de simplismos, reducionismos e rasas conclusões.
 
Afinal, jamais se tolera ou admite uma chacina como a de hoje.

Entretanto, também já está na hora desta turma toda que não vê limites pela audiência (e expressão) repensar os seus conceitos, os seus modos e as suas ações.

Ofender quem quer que seja não pode ser tolerável -- é a ética do respeito e a consciência fundamental da responsabilidade que exigem serem lembradas.

Muito pior, ofender o que há de mais sagrado e intangível para bilhões de cristãos, muçulmanos ou judeus é inadmissível.

E também não tem graça alguma.




sábado, 3 de janeiro de 2015

# mas não diga nada que me viu chorando

 
 
Partir é arrancar um naco da gente.
 
E não há chegadas que preencham os buracos cavados na alma, afinal, elas vêm, cobrem com a sua viva presença, para em cada partida tudo desviver.
 
Cruel, indigna, ingrata, a partida é merecedora de todos os vitupérios em todas as línguas -- inclusive as mortas.
 
Pois ela maltrata, arde, machuca, sangra, mutila.
 
O que faz da despedida da partida parecer um mergulho numa tina efervescente de cicuta.
 
Contudo, ora, o que seriam das partidas se tratadas fossem com a boçal frieza da normalidade?
 
Ter-se-iam chegadas frias, frígidas, frívolas, trivializadas de modo a serem encaradas com o ar blasé dos hábitos conventuais.
 
E não se teria a falta de ar, a arritmia, a adrenalina e a hemorragia de tanto amor antes represado nas veias que nos fazem chorar lágrimas de felicidade a cada momento de se ver chegar.
 
Mas partir é também levar aquele naco arrancado da gente.
 
E não há melhor antídoto para aquela maldita saudade que juntar e tratar dos nossos pedaços.
 
Pedaços em forma de memórias, melodias, mimos, manuscritos e marmitas.
 
Saudades arrefecidas por aquelas pequenas coisinhas que as chegadas reabastecem cada partida.
 
Então longe, tranca-se num jardim de uma nuvem qualquer para antes lamber e depois plantar, arar e regar aquilo tudo que se carregou.
 
E sem jamais podar, espera-se que do gesto faça crescer, ao infinito do destino, pés de cada um e de cada uma que se deixa nas partidas.
 
Nas despedidas, vê-se, reenchem-se as malas de renovadas mudas de gente.
 
Pois partir parece, mas não é um adeus.
 
É apenas cultivar o amor à distância.



sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

# pátria educadora



Já apresentamos aqui em nosso microtratado: a nossa revolução está na educação, com uma "pedagogia da libertação" a serviço da transformação social, como desenvolveu o patrono Paulo Freire.

Educação na qual nenhum governo nestes quinhentos anos mexeu pra valer.

Excetuem-se os dúbios anos de Getúlio Vargas e os poucos anos de Fernando Haddad como Ministro de Lula (IDEB, FUNDEB, PROUNI, ENEM, FIES), e nada de concreto, duradouro e visionário foi feito.

Neste tempo todo enxugamos gelo, douramos a pílula, tomamos atitudes pra inglês ver e fingimo-nos de bons samaritanos diante da causa.

Evidentemente, os donos do poder jamais se preocuparam com a matéria, pois tudo era uma questão de "classe", de "dom", de "sangue" e de "meritocracia".

Em suma, era cada um no seu quadrado, pois o destino de cada família assim já estava eternamente traçado: "eu" com meu computador, minha mesa e meus livros e o "outro" com a sua vassoura, seu balde e suas latrinas.

Assim, a nossa República trancou-se numa rotina infértil -- que em matéria de Educação (quase) nada tem inovado --, cômoda -- arrendando a obrigação às escolas mercantis, fábricas de jovens fadados a um ensino enciclopédico, ultracompetitivo e cujo fim está em si mesmo (ou num inconsequente vestibular) -- e selvagem, deseducando nas escolas públicas de modo a alijar os filhos da nossa pobre gente de qualquer esperança e oportunidade de revisar sua sina.

E a nossa Federação tem insistentemente falhado neste seu apriorístico dever republicano, com limitações profundas na sua tarefa educacional de se converter em "Estado-educador", e não mero Estado fundador de escolas e administrador de um sistema educacional entregue e falido.

Ao cabo, pois, arruinamos a educação pública nos ensinos fundamental e médio, o segredo dos nossos olhos e do nosso futuro.

Por isso a importância dada ao assunto pela Presidenta Dilma nos seus dois discursos de posse, e o mote criado em ambas as suas boas falas: "Brasil, Pátria Educadora".

E por isso a certeza (e a grande vontade de ser ter a certeza) de que tal ideia -- a qual será posta em prática pelo novo Ministro Cid Gomes, irmão do grande Ciro Gomes (v. aqui) -- não será apenas um slogan de pós-campanha.

Afinal, revolucionar a nossa escola pública será a nossa redenção como Estado, e a chave para a emancipação de milhões de brasileiros.

Será a bússola pela qual o Estado brasileiro navegará pelas próximas décadas.

Será o melhor (e único) meio de tornar, enfim, a nossa pátria livre.
 
Educação ou morte! -- eis o lema.