terça-feira, 18 de setembro de 2018

# o horror e a carrocinha



Em 2016, às vésperas das eleições dos EUA que deram a vitória ao tio Donald contra a Madame Clinton, o filósofo Slavoj Žižek disse que, entre ambos os horrores, eleger o magnata do showbiz seria menos horrendo (v. aqui).

Os seus argumentos? Era necessário pôr fim à ideia de que "não fazer nada"  e com isso aprofundar o fracasso da política e da sociedade estadunidense  seria pior do que eleger alguém com o "risco" disso, mesmo com as promessas de mudança à direita e eticamente desmoralizantes.

De modo frio e calculista, Žižek dizia que, menos do que apoiar um ser desprezível como Trump, a ideia era se emancipar da política protecionista, elitista e bélica daqueles "democratas" e que tanto mal continuariam fazendo ao povo dos EUA (e ao mundo), e para isso o candidato republicano seria um "mal menor".

Ainda, entendia o filósofo que o modus operandi deste grupo de "republicanos" liderados por Trump, por mais repulsivo que fosse  como, por exemplo, suas ideias xenófobas e seus preconceitos de múltiplas ordens , passaria longe de se traduzir em medidas totalitárias ou restritivas à liberdade do povo americano. 

Bem, agora vamos à nossa realidade.

Urbi et orbi falamos: as semelhanças que há entre Jair (PSL), a mula-sem-cabeça dos patos amarelos, e o Donald são as mesmas que há entre uma mexerica e um alfaiate.

Afora todas as diferenças e distâncias entre ambos que já apresentamos (v. aqui), os riscos que se colocavam à eleição do outsider à presidência dos EUA, em termos de perigo e ameaça à democracia, não poderiam se comparar àqueles existentes com o ex-milico e projeto de fantoche de um "sistema antipovo", uma vez que a complexa trama de instituições políticas e sociais norte-americanas – conquanto bem se saiba como funcionam e a quem atendem – não poderiam ser superadas por rompantes de um boitatá qualquer.

Ocorre que no Brasil pós-golpe a conversa é outra, confirmando-se que tudo é possível, tudo é meio mambembe, tudo parece movediço ou suscetível de cambalhotas, gritos e viradas de mesa antidemocráticas.

No contexto ora em destaque, esse Jair francamente se apresenta como uma ilha mobral rodeada de jagunços verde-oliva por todos os lados e que não exitam em assumir publicamente os limites das suas vontades: um governo à força e uma gestão à fórceps que não cora em propagandear um "autogolpe".

E Jair não esconde este seu gosto e, por não saber e nem entender bulhufas fora da cartilha comportamental da Idade Média que defende, se submeterá in totum à "agenda pinochetiana" imposta pela trupe que lhe afiança a candidatura: fundamentalismo de mercado com repressão social.

Assim, afora o absoluto colapso institucional e o certo caos econômico para o qual seremos empurrados e lá trancados, conforme o funesto modelo colono-neoliberal que será implementado no Brasil sob a batuta do jogador de casino Paulo Guedes e seus crupiês, a realpolitik será ditada com as mãos de ferro e nada invisíveis da galera do Vice Mourão, uma espécie de superlativo daquele juiz paranaense, porém mais sincero e autoritário e que troca gravata por coturnos e caneta por cassetetes.

Em suma, deve restar claro aos incautos e vacilantes brasileiros o seguinte: votar nesta turma toda não significa apenas flertar com o poder das forças armadas, mas assumir que no horizonte não se titubeará em colocar as forças armadas no poder, as quais tirarão do quepe competências e atributos para pôr "ordem e progresso" no país, e dar luz, voz e formalidade a um regime que oficialmente desprezará o estado de direito e a soberania popular, dando lugar a uma tragédia absoluta.

Portanto, se na leitura de Žižek o horror de Trump seria menor do que com Hillary, por aqui não se pode cogitar tal paralelo: seja qual for o adversário do mitológico candidato do PSL, a sua desgraça não alcança nenhum outro concorrente.

A mexerica Jair, portanto, nem nisso se aproxima do falastrão prêt-à-porter yankee.

Afinal, no nosso caso, o sujeito e sua trupe galopam montados sobre alvoroçadas cadelas no cio. 

Aquelas, aquelas cujo nome é fascismo.



sexta-feira, 14 de setembro de 2018

# fiat lux


Uma das versões de um conto da mitologia grega narra Zeus, injuriado com Prometeu – porque esse roubara o fogo dos deuses para dar aos homens , mandando entregar a Pandora, a primeira mulher e cujo único defeito era a curiosidade, uma perigosa caixa contendo todos os males do mundo, com uma única recomendação: nunca abrir.

Mas é claro que lá pelas tantas ela acabou abrindo, fazendo com que saísse todas as desgraças mundanas: pecados, doenças, vícios etc.

Eis a "caixa de Pandora".

Aproprio-me da lenda a fim de lembrar a frase que talvez simbolizará para a história as eleições de 2018, proferida pelo grande brasileiro Ciro Gomes: "é preciso pôr o Ministério Público e o Judiciário de volta nas suas caixinhas".

É claro que não se pode ver em ambos a fonte de todos os males, nem tão-pouco considerá-los uma desgraça e si.

O problema, portanto, está no papel que hoje inventaram ter e nas funções que se adonaram, bem representados, por exemplo, no modus operandi da "Lava Jato" e na frase de um dos ministros do STF: "iremos refundar a República!".

"Iremos" quem, cara-pálida?

Sem qualquer mandato e sem a menor atribuição para tal este dueto, crê-se ungido pela água batismal do Rio Jordão e insiste em desenhar um Estado e um Direito à la carte para diretamente resolver os desígnios político-eleitorais de um povo, como fruto do descrédito do Legislativo e da acefalia do Executivo pós-golpe.

Assim, se no Brasil houve o voto censitário, aberto, bipartidário, de cabresto, por procuração, por testemunha... agora há o "voto tabelado", aquele que depende da moral e da convicção de meia dúzia de cidadãos concursados ou togados, os quais acusam, desculpam, soltam e prendem em estrita observância ao seu gosto ideológico e, nesta época, ao calendário e às campanhas eleitorais.

E esta lógica que depende do apetite da dupla revolucionária tupiniquim avacalha o pleito e torna absolutamente anormal o já desgastado processo democrático brasileiro – e desta vez como nunca antes na história pós-ditadura, pois agora se vê manipulado o
 sistema representativo de democracia não apenas pelo processo econômico ("dinheiro"), mas também pelo processo judicial ("caneta"). 

Desde a sua cogitação, manifestei-me contra a tal da "ficha limpa", um dos braços-fins de atuação do consórcio travestido de bastião refundador da República, como se fosse um poder constituinte moderador.

Ora, a quem cabe definir quem pode ou não ser eleito, respeitando-se a ordem constitucional, é o povo soberano.

A ele cabe, nas urnas, vetar ou não alguém, e não um regramento judicial pouco objetivo e baseado em ações e decisões que funcionam na base da conveniência.

O que deve ficar claro é que não é a meninada do Ministério Público, tão-pouco os iluminados da Idade Média do Judiciário que devem definir quem pode ou não pode ser candidato, como se competentes para fazer uma "triagem" de quem a população pode gostar ou não.

Ao se tentar sopesar os princípios constitucionais, a diretriz da moralidade não pode sobrepor-se à soberania popular que, embora não-absoluta, não pode admitir restrições injustificáveis ao direito político fundamental de elegibilidade como a que fora estabelecida em tal lei 
 que, vejam só, nasce de iniciativa popular.

É ao povo que cabe errar e acertar, confiar ou duvidar, se animar ou se frustrar, nos limites que a lei imporá às propagandas e às verdades das candidaturas postas. E é a partir dessas escolhas feitas que o povo irá se iludir, se arrepender e se orgulhar. 


Se o povo quer eleger seus betos richas, seus platelmintos ou seus facínoras e caricaturas de adoração, ele tem todo esse direito, não sendo legítimo submeter o ato de eleger alguém às plumas e paetês de uma caneta jurisdicional lastreada em processos mal-acabados e inacabados  lembre-se que no Brasil "segunda instância" não significa "trânsito em julgado"  e que culmina na invasão de espaços de cidadania e, insista-se, na moralização do voto.

E cabe à sociedade, neste contexto, dedicar-se para que esta sua gente saiba os porquês das suas escolhas e as consequências delas, aprendendo com isso e reconhecendo a formação das suas visões de mundo e do processo ideológico que lhe dá sustentação e que carece de explicação. 

Afinal, lembremos com Chomsky: "a população em geral não sabe o que está acontecendo e nem sequer sabem que não sabe".

Logo, cabe a sociedade, por meio de um processo educacional amplo e transformador (v. aqui) e mediante um sistema de comunicação efetivamente público, tal qual prescreve a Constituição, ensinar e informar à população as relações de causa e consequência, a verdade de atos e fatos e os interesses e os prejuízos em jogo. 

Cabe dar os instrumentos necessários para que a população compreenda porque escolhe fulanos e não beltranos; cabe fazer refletir sobre como funcionam as coisas, sobre os donos do poder e sobre a luta de classes, o eterno motor da história.

E não restringir ainda mais o modelo representativo, na base de uma "pré-seleção" feita pelo Poder Judiciário que bloqueia a democracia em nome de uma construção pseudomoralizadora da política, como se possível fosse querer a perfeição ou encontrar em candidatos a quadratura do círculo.

Pior, ao lado da tal "ficha limpa" vê-se medidas espalhafatosas de um Ministério Público associado aos holofotes midiáticos, cujas ações são cronometricamente estabelecidas vis-à-vis ao processo eleitoral, mais uma vez judicializando-se a política. 

E por isso, tão importante quanto devolver o MP e o Judiciários para as suas respectivas caixas de atribuições e competências, é a necessidade de recrudescer e criar mecanismos efetivos de controle das suas ações fora-da-caixa, evitando que continuem a transitar num mundo marvel de superpoderes.

Uma das medidas mais notáveis estaria na modificação da composição, funções e razões de ser do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, instituições criadas em 2004, mas que, apesar dos propósitos constitucionais ("controle da atuação administrativa e financeira" da respectiva instituição-poder e "cumprimento dos deveres funcionais" dos respectivos agentes políticos"), ainda não dispõem dos "dentes" necessários para fazer valer as suas existências, ainda amarradas no formalismo, no corporativismo e na atuação em pontos marginais das vidas ministerial e judicial.

Outras, como mandatos fixos para membros das cortes superiores, nova metodologia dos "quintos" constitucionais e alterações em aspectos das Leis Orgânicas da Magistratura e do Ministério Público, como relacionadas às sanções e ao ingresso de seus membros, são também bem-vindas.

Ademais, é por essas veredas que também se tem a ideia de transformação de um Direito que dialogue com a heresia e a utopia para a reconstrução de uma nova matriz prático-metodológica, de modo a não perpetuar a mediocridade sufocante encarnada nos "homens da lei".

E, com ela, o advento de uma nova cultura jurídica que aproxime a justiça da cidadania e da democracia.


Sem a degeneração moral e intelectual de magistrados (v. aqui) e promotores (v. aqui) que atuam medusicamente atraídos pelos holofotes da mídia e do poder, agora verdadeiramente conscientes e responsabilizados pelos seus papéis num ambiente limitado e sustentado pelo estado democrático de direito.

Sem as relações feudais que envolvem os grandes escritórios de advocacia e os membros do sistema judiciário, agora desmercantilizando o método e o resultado das ações judiciais.


Sem a ação e a produção interpretativa que se afasta do quadro e do espírito normativos, agora repotencializando os ideais impessoal e democrático dos marcos jurídicos.


Sem a deficiência conveniente do Poder Judiciário que se sustenta na lentidão de um processo medieval e na distância de um sistema nobilíssimo, agora reformando a prática e o palco de aplicação do Direito.


Sem os véus e salamaleques que registram a formação enciclopédica e escolástica de seus fidalgos em regra ignorantes, insensíveis, neutros como um sabão em pó e que vivem a léguas da conjuntura e da história nacional, agora revelando a realidade brasileira nos bancos das faculdades, pluralizando-as radicalmente, de modo a formar cabeças verdadeiramente conscientes e independentes.


Sem o oco dos imperativos constitucionais de papéis que criam sombras de direitos fundamentais e amarras heterogêneas de realização, agora reconstruindo alternativas ao Direito, com novos conceitos e atores (e movimentos) sociais capazes de produzir novas fontes para a própria libertação sob a perspectiva dos grandes e intocáveis conflitos nacionais.


A onipotência institucional, o estelionato corporativo, a picaretagem científica, a midiatização funcional e a insipidez e o distanciamento social são os grandes enfrentamentos perante os quais a comunidade política, para a reconstrução do Estado Democrático de Direito e a realização da Justiça, não pode tergiversar.


Portanto, além de transformar, é necessário trazer MP e Judiciário para as suas caixas republicanas e assim apagar seus males e fogos, nesta espécie de "sexto círculo" do Inferno dantesco no qual a nossa sociedade está a queimar, já que esta parece insistir na heresia de não reconhecer naquelas autoridades políticas a figura de deuses. 

Deuses, porém, que não sabem que fora da política e de uma democracia viva e emancipadora inexiste salvação civilizacional.

E luz.


P. S. Pandora, ao ver o erro que cometera e crendo que tudo estaria consumado, decide por reabrir a sua caixa para então perceber que no fundo dela havia, vejam só, a "esperança"... esta que seria um prolongamento do suplício, segundo Nietzsche, ou um hábito da alma bem-aventurada, como queria Santo Agostinho?