terça-feira, 31 de maio de 2016

# imortais



Já no prelo como tema de um artigo científico que finalizo ("A fatídica imortalidade no serviço público – uma reconfiguração do regime de trabalho do servidor público"), não me furto a aqui apresentá-lo, merecedor de séria reflexão: a revisão deste modelo de estabilidade do servidor público.

É evidente que tivemos avanços com a Emenda Constitucional nº 19/98, a inserir na nossa Carta Maior o principio da "eficiência" e a admitir a expurgação de servidores públicos estáveis em casos de "mau desempenho".

Mas ainda é muito pouco.

Primeiro, pela péssima qualidade das avaliações periódicas de performance promovidas pela Administração Pública país afora.

Na verdade, não se está a "avaliar", mas simplesmente a se justificar o desempenho.

Ora, e aqui não sejamos ingênuos: dificilmente a coisa irá andar, pois há pouco interesse em se levar adiante um negócio muito sério e comprometido com os princípios da melhor gestão, sob pena de ser autofágico – sim, a turma teme armar a própria arapuca.

Depois, pela fragilidade de se sustentar os critérios exoneratórios adotados em uma demanda judicial, uma vez que o Judiciário costuma, pelo ranço conservador que lhe caracteriza, não admitir exonerações com base – mais ou menos frágil – na má (ou na não) apresentação de resultados pelo profissional estatal.

E por isso a necessidade de se rediscutir até que ponto a estabilidade é salutar para o Estado, para o funcionamento da máquina pública e para a boa prestação do serviço público, como aqui já colocamos.

É evidente que não se admite um "modelo privado" nas relações de trabalho entre Estado e servidor, com a mera dispensa ad nutum, típica também dos cargos em comissão.

Seria um perigo enorme, pois se teria, a cada eleição, um desmonte nas carreiras e o desfazimento de todo o aparato funcional em prol de conveniências partidárias e arrumações políticas.

A demissão privatista não valeria, também, pela simples razão de que inibiria denúncias, restringiria objeções e censuraria críticas, esvaziando o melhor ambiente corporativo estatal ou blindando-o com o lado negro da força.

Portanto, não é este o caminho.

Todavia, insiste-se, deixar como está não é lógico, não é legal, não é moral.

E engorda, incha-se sem retorno e sem valor.

E pelos cantos e rebarbas da máquina pública acaba-se criando foie gras de tatus.

Conheço e sei de inúmeras exceções – emocionam-me até, e é verdade. 

Mas uma considerável massa insiste em querer formar um bolo embatumado, indigesto, azedo.

Ela não se empenha, ela não se dedica, ela não mergulha, ela não quer saber de outra coisa a não ser a grana, a sombra e a rasa água fresca da vida fora das quatro linhas.

Ela não enxerga muito sentido naquilo que faz, ela não acredita no que faz, ela não faz mais do que lhe apraz, ela se perde na eternidade da sua desfeita posição, sem prazer.

Ela precisa, enfim, ser posta à prova, ela precisa sentir que arde, ela precisa acreditar no fim e no seu fim.

Ela precisa perceber que o papo de ser eficiente, eficaz e efetiva, de fazer acontecer, de vestir e suar a camisa não é mera retórica de livros de auto-ajuda ou de lunáticos leninistas simpáticos a uma vida estatizante.

Ela deve, pois, entender que não mudando, não se dedicando e não se repensando estará fora, na rua.

Ora, ninguém pode entrar num lugar e saber que por lá ficará durante toda uma vida, intocável, impávido e colosso, salvo, apenas, se for provado (muito bem provado) que roubou a cântaros, que matou o colega com rituais satânicos ou que sumiu por uns doze anos em pescarias na Sumatra, tudo passado em cartório e assinado pelo deus do departamento.

Por isso, e a cada dia mais, parece-me que um modelo híbrido, que comungue regras das leis dos trabalhos "estatutário", "temporário" e "celetista", seja a melhor construção.

Em linhas muito gerais: contratos de trabalho, frutos de concurso público, com direitos e obrigações muito claros, renováveis por “n” vezes mediante um processo de avaliação de desempenho meticuloso e dinâmico – eis de novo o problema, mas que ao menos não esbarrará na potencial perenidade do sujeito no cargo e na evitação da autofagia –, com direito a FGTS e INSS diferenciados, regrado com remuneração e jornadas flexíveis e mesclado com incrementos sociais categorizados e negociados via sindicatos.

E o próprio Poder Judiciário controlaria os excessos, nos termos do contrato e dos motivos determinantes da exoneração, como hoje já o faz, mas sem as amarras da quase eternidade funcional.

Não é simples assim, é claro.

Mas o "simples" é continuar aceitando a atualidade atroz que faz tanta gente ingrata e imerecida ficar perpetuamente no Estado.

E isso não mais se sustenta, sob pena de se construir ambientes criogênicos na gestão pública.

Ou de se ter descoberto uma espécie de "pedra filosofal" para deleite de alguns.




quinta-feira, 26 de maio de 2016

# ai de ti, judiciário



“Renan, eu recebi aqui o Lewandowski... [Eu] querendo conversar um pouco sobre uma saída para o Brasil, sobre as dificuldades, sobre a necessidade de conter o Supremo como guardião da Constituição... e o Lewandowski só veio falar de aumento. Isso é uma coisa inacreditável”.

Assim o Presidente do Senado Federal (Renan Calheiros) reproduziu, em conversa telefônica gravada e agora revelada (v. aqui), o desabafo que lhe fez a Presidente da República.

Numa frase, um bom ângulo do retrato do Poder Judiciário.

Formado por uma casta que, de quando em vez, aceita um ou outro estranho como membro, este Poder da República alcatifa-se sob os mais convenientes mantos para driblar a realidade, firmando-se intocável no mundo paralelo em que vive.

A ponto, vejam só, de no auge de um dos mais críticos momentos da história brasileira, o Chefe do Judiciário (Ricardo Lewandowski) – cujo Poder tem revelado, inclusive, tibieza e pusilanimidade ímpares diante da ruptura da ordem democrática– ir se sentar com a Chefe do Executivo para pedir... “aumento” (v. aqui e aqui).

Sim, aumento para quem representa a elite suprema do serviço público no Brasil, vértice da pirâmide social e merecedora dos mais medievais privilégios.

Sim, aumento para quem, na sua regra, despacha por intermediários, sentencia por assessores e repousa no bumba-meu-boi da “lei”, transitando pelo magistério, pelos congressos e pelas pós-graduações à revelia da sua jornada e carga de trabalho.

Sim, aumento para quem, sob o prisma da gestão, está distante de qualquer eficiência, eficácia ou efetividade que assim justifique.

Eis, portanto, um bom pretexto para muito brevemente se falar do Judiciário e do Direito, instrumento de manejo do militante jurídico.

O norte teórico da atuação dos magistrados é vulgar: para soar seus atos como imparciais, aplica a letra fria da lei, sob uma exegese pobre e baldia, aplicada aos borbotões nos casos que envolvem a massa, invariavelmente num ritmo de produção em série e pouca séria.

Entretanto, para atender aos interesses das figuras secularmente reinantes nestes tristes trópicos, costuma tergiversar, inventar e carcomer o espírito da lei, fatiando-a e servindo à la carte, com esteio em tudo que é doutrina, jurisprudência ou mandinga disponível, numa enfadonha ladainha eclesiástica que inundava os templos pré-Francisco, defensora dos fortes e opressores e promotora do status quo.

Ainda, sob o cadafalso do Estado, pensam que a toga outorga-lhes o direito de não fazer e de não pensar o Direito.

Razão pela qual julgam suficiente derramar sobre o papel timbrado do Judiciário todo o seu fanatismo, apunhando uma pena amotinada, amulética e amolecada – e jurando tudo ser apolítico.

Ora, hoje, canonize-se o Direito, encarando-o como uma ciência em si – e este Direito ensimesmado provoca e frutifica o não-Direito, construindo-se sob a esquizofrenia jurídica um mar de teses e decisões que nascem da mesquinhez do causídico e da luxúria de magistrados e promotores.

Com esta fórmula, multiplicam-se os aldrabões que rodeiam a metodologia (e o conceito) do Direito porque esse desfila sob o véu de um dogmatismo fajuto e retrógrado.

Afinal, no seio do capitalismo liberal, o Direito subsiste como uma de suas ferramentas mais agudas de imobilização democrática.

Todo o contexto contrarrevolucionário que afeta a sociedade tem no Direito seu mais sólido baluarte, seu cão de guarda mais obediente e irracional. 

Um Direito que se quer apartado da Justiça.

Desde a crise do positivismo, maiormente no séc. XIX, os juízes deixaram de ser porta-vozes mecânicos da Lei e, com isso, a sua autonomia e dignidade constitucional passaram a ter um relevante papel na formação do "legal" e na oferta do "justo".

Entretanto, os avanços são mínimos e rasteiros – para além, esta fixação contemporânea com princípios e regras abstratas pode prestar-se ao regresso.

E, no Brasil, a crise talvez seja pior porquanto insiste em acolher um repertório institucional de fora, idealizador do pensamento jurídico americano-germânico.

Nos mais diversos campos, institutos do Direito são encarados com a intangibilidade da fé.

O conceito de "propriedade privada", para ficar num exemplo, não pode subsistir sob a mesma fórmula milenar, mística e mitômana, do direito individual; hoje, longe de qualquer canônica receita soviete (ou rousseauniana), novas e plurais formas de direito de propriedade devem ser promovidas e reguladas, seja comunitária, associativa, cooperativa, coletiva, fracionada, social ou quaisquer outras possibilidades que esperam por descoberta.

Ou o direito penal, para ficar noutro caso, continua a tratar o seu objeto como bem privado, pois não percebe que, no ambiente de um estado democrático, admitir a privatização da defesa do réu, para longe da exclusiva tutela de uma defensoria pública, apenas contribui para a idealização mendaz e não garantista da ampla defesa, que ao cabo percebe a quase solitária criminalização de pobres e pretos numa seleção nada arbitrária de classes de transgressores (v. aqui).

Depois, a ideia de transformação, que dialogue com a heresia e a utopia para a reconstrução de uma nova matriz do Direito, de modo a não perpetuar a mediocridade sufocante.

E com ela, ao cabo, o advento de uma nova cultura jurídica que aproxime a justiça e os tribunais da cidadania e da democracia.

Sem a corrupção e as relações feudais que envolvem os grandes escritórios de advocacia e os membros do sistema judiciário, agora desmercantilizando o resultado das ações judiciais.

Sem a produção interpretativa do Direito que se afasta do quadro e do espírito normativos, agora repotencializando o ideal democrático dos marcos jurídicos.

Sem a deficiência conveniente de um Poder Judiciário que se sustenta na lentidão de um processo medieval e na distância de um sistema nobilíssimo, agora reformando a prática e o palco de aplicação do Direito.

O crime funcional, a picaretagem intelectual, a esterilidade jurisdicional, a assepsia social e o fetiche institucional são, pois, os grandes enfrentamentos que a comunidade jurídica, para a reconstrução do Direito e a realização da Justiça, não pode tergiversar.

É a dignidade pessoal de nós juristas, e a dignidade da nossa ciência, que estão em jogo.

E o Poder Judiciário deveria, sempre, ser o primeiro a olhar e atentar para isso.

Sob pena de não apenas ser um Poder vazio, mas indigno, que se sustentaria nas falácias do tecnicismo e da meritocracia para mascarar a sua degeneração moral e institucional.



quarta-feira, 25 de maio de 2016

# atleticanas (I)



Arrisco no exagero temporal, mas mesmo assim não hesitarei: o Cleberson é, tal qual uma Carlsberg, provavelmente o pior zagueiro da história do Atlético.

Sempre atrasado nos lances, sempre no lugar errado na hora certa, sempre posicionado onde nunca deveria estar, nunca estacionado onde sempre deveria estar, é um descuido da física e um arremedo do raciocínio lógico.

Salta como um sussurro, corre como curupira, marca como um pinguim, balança e cai como um pacote flácido, é simplesmente um terror que se movimenta na contramão atrapalhando toda a nossa máquina de jogar futebol.

Fura, flamba, falseia, floreia, faz fumaça em qualquer mano a mano; bola na mão, mão na bola, queixo e bunda no chão, é um joão clássico para qualquer mané mirim que lhe enfrente.

Algo inadmissível para um defensor, sorri o tempo todo, num sorriso de Monalisa indecifrável como o esporte de bom moço que tenta praticar em campo.

Ele, com o sono estampado no rosto e seu jeito de boneco de posto de gasolina nos braços, tem um futebol lento, lerdo, dopado com sangue batizado que não oferece combustão alguma.

Sem vigor, sem jaça e sem força, vai de mal a pior num curto espaço de tempo – assim, cobrar-lhe qualquer noção de tempo e espaço seria até indelicado.

Ora, as suas dificuldades básicas com a bola, psicológicas com os atacantes e matemáticas com tudo que acontece dentro das quatro linhas e no universo do retângulo da grande área são comoventes.

Ao seu lado, qualquer beque sentaria e choraria, às margens do rio Água Verde que por debaixo da Baixada passa; na sua retaguarda, arqueiros como Lev Yashin se transformaria num reles aracnídeo pálido, vesgo, maneta e cansado de ver a meta arrombada.

E assim vive o nosso imberbe zagueiro: cansado, alienado, como se navegasse num mundo paralelo, lisérgico, catando conchinhas no lado de lá das nuvens enquanto a caravana adversária passa – e, dele, nem um pio se ouve.

Que mistério, afinal, ronda o clube que não se desfaz, por qualquer conto de réis, deste personagem, desejando-lhe toda a sorte do mundo e mandando-o para longe, de preferência a vinte mil léguas submarinas do CT do Caju?

Cleberson, meus caros, é uma injeção indesejada de pavor na veia que nos levará a viajar pelas trevas.



segunda-feira, 23 de maio de 2016

# ivo viu a uva



Roda cotia, de noite, de dia, o galo cantou e a casa caiu.

E eis que a ciranda dos amarelinhos muda o tom, muda o som.

Chega de fúria? Chega de atirar o pau no gato?

O que fazer agora que restou claro porque o golpe é golpe?

Com todas as letras, com todas as vírgulas e com todos os pingos nos is, ei-lo muito bem desenhado, dissecado e destrinchado, como numa necropsia, pelo bisturi de um dos mentores do processo: Romero Jucá (PMDB), o onipresente -- v. aqui.

É o cadáver do golpe, ali, deitado, frio, nu, com as vísceras expostas ao sol do meio-dia, sob os olhos de meio mundo.

A frase que resume tudo é, francamente, pornográfica: "Enquanto ela [a Dilma] estiver lá, essa porra [a Lava-Jato] não vai parar nunca", diz Jucá -- hoje Ministro do interino Temer, foi ministro durante três meses no Governo Lula e foi sacado por suspeita de crimes (v. aqui) --, dando o veredito dele e de alguns ministros do STF.

Com a gravação telefônica -- por que nada foi feito e só agora vazada, se ela é de março? --, a arquitetura e os elementos desta ópera bufa ficam na vitrine, para vermos ali, escancarado, em todos os detalhes: 

(i) que a ideia de tirar Dilma é para interromper as investigações e estancar esse papo todo de combate à corrupção;
(ii) que o novo governo vai, num "acordão", fazer ruir a Lava-Jato;
(iii) que com auxílio da velha mídia, a pauta dos noticiários será outra;
(iv) que tem dedos do STF no arranjo golpista;
(v) que o PSDB co-liderou a tramoia e tem salvo-condutos na MPF e no Judiciário; e 
(vi) que todos eles têm muito medo do que Lula e as ruas mobilizadas são capazes.

E resta a questão: como e por onde andará aquela matilha que praguejava contra Dilma, Lula, PT e uma ideia de esquerda no poder, todos esses símbolos magnânimos do eixo do mal, aquele feito de corruptos e incompetentes e em cujo ritual está comer criancinhas?

Bem, esse negócio de vergonha, de ter vergonha na cara, é claro muito relativo.

Mas já é um tal de enfiarem a cabeça na terra ou de fingirem “não é comigo” que torna a situação ainda mais constrangedora, como aquele sujeito que solta um pum em público.

Sim, pelas ruas, pelo trabalho e pelas redes sociais, um silêncio eloquente e que rubra a face destes personagens: parece que tenho em volta um bando com as mãos amarelas.

Incrível, isso.

Afinal, jamais essa turma, mais ou menos golpista, poderia acreditar que, em onze dias, (quase) tudo viraria pó.

Pirlimpimpim, e não mais que de repente fez-se a luz.

Ou, como num Segundo Dia por Ele desenhado, tem-se o firmamento.

Só que às avessas.

E em pouco mais de uma semana, caiu o mundo na República Federativa da Ordem, do Progresso, de Deus, da Família e da Propriedade.

"Ué, a gente não estava batendo panela para acabar com a corrupção?", se perguntam. "Cadê os cavaleiros da Távola Redonda que nos levariam para o Brasil sagrado?", indagam os adoradores do faz-de-conta contado pela Vênus Platinada. "E que horas o Aécio assume?", uns mais incautos hão de querer saber.

Nada estranho, extinguiram-se os comediantes de ocasião, aquela turma que fazia chiste do momento do país, fazendo graça de ver rasgada a Constituição, como se no espelho a cara gozada não fosse a sua.

Fingiram-se de mortos, rolaram, sentaram, deram as patinhas, foram atrás das bolinhas e, bem adestrados, jamais ousaram se soltar das rédeas que os amarravam à narrativa burlesca do "impeachment".

Ô, amarelinhos... agora não cola o papel de assoviar olhando para o nada e fazer cara de tundra.

Vamos: gritem, chiem, suem, estrebuchem-se na realidade.

Encarem a situação, não queiram posar de isentões e lamentem a sério a canalhice que ajudaram a promover: sim, vocês puseram no poder o que há de mais podre no reino da política brasileira, que atua com fim em si mesmo e sob as pautas e os programas mais reacionários do planeta.

Afinal, quem mandou fantasiar o gigante para se levantar contra a ordem democrática, contra as regras do jogo de um Estado de Direito?


quinta-feira, 12 de maio de 2016

# carontes e zumbis



Hoje, nesta quinta-feira cinza, trágica e com as lágrimas da chuva, me pergunto: onde estarão os "amarelinhos"?

Onde estará toda aquela turma lobotomizada que vagava e babava apoiando e desejando este momento?

Onde estará a alegria daquela matilha com a consumação orgásmica do seu desejo?

Onde estará o indiscreto charme da burguesia limpa e bem-cheirosa que, finalmente, consegue o que visceralmente queria?

Cadê, cadê o êxtase da chusma que deu asas, alimentou e aninhou este golpe parlamentar?

Com o tempo, lá na frente, quando meus filhos me perguntarem sobre este momento histórico "pai, de que lado você estava?" –, eu poderei dizer, cheio de orgulho neste peito, que estive ao lado da democracia, da justiça e do Estado de Direito. 

Por outro lado, não lamento pelos outros – ah, tantos tão próximos a mim... – que serão personagens sombrios e funestos das páginas da nossa História, tais quais aqueles bichos que em 1964 deram as mãos aos militares e nos conduziram às trevas.

Não lamento porque, obviamente, sabiam muito bem o que se tramava no país,  num enredo marcado pela arbitrariedade e pelo casuísmo (v. aqui).

Não lamento porque escolheram ser levados como camarão pela onda golpista, fazendo questão de não saber do que se tratava, embalados pelo onipresente discurso midiático e com a (burra) certeza de que este era o melhor caminho – a verdade e a vida , regurgitando como catedráticos ventríloquos teses sem nexo que por aí ouviam na tentativa de legitimar o cadafalso para o qual empurram o Brasil (v. aqui).

Não lamento porque assim tiveram todas as oportunidade do mundo de conversar, ler e ouvir o que estava por trás deste processo de "impeachment" (v. aqui e aqui).

Não lamento porque lhes era possível olhar, com os olhos de ver e reparar, quem estava nesta trincheira, deste lado del riolutando pelo respeito à ordem constitucional: cientistas, intelectuais, artistas, os movimentos sociais, a comunidade internacional, as minorias marginalizadas e, em especial, o povo.

Povo esse que voltará a comer o pão que esses diabos golpistas hão de amassar.

Afinal, no lombo de quem vocês imaginam que irá arder as ações, as omissões e as comissões de um "governo" (des)encabeçado pelo PMDB que, sob aquela velha e carcomida direção, sacará direitos, flexibilizará garantias e imporá restrições civis e sociais ao bel-prazer da sua agenda conservadora não consagrada nas urnas?

Ora, quem pagará pelos tais ajustes, pelos arrochos fiscal e monetário, pelas revisões e releituras, pelos cortes inominados e infaustos?

Quem se não o trabalhador, o pobre, o preto e o periférico, os quais serão exemplarmente comprimidos ou descartados pela arquitetura neoliberal da tal "Ponte para o Futuro" que, sob o timão de Temer e Cunha, levará todos ao primeiro círculo do inferno?

Agora, a ditadura plutocrática – que, honra lhe seja, rege quase todos os lugares do mundo – não terá o enfrentamento nem mesmo das franjas de um Estado Social, nem mesmo de um desbotado vermelho de um governo eleito de centro-esquerda, para delírio do "mercado" e de seus agentes.

Enquanto isso, numa realidade paralela – mas que nem no infinito cruzam com a verdade , os noticiários da grande mídia serão uma overdose de sorrisos, de afagos, de musas, de plumas e paetês.

A parva massa amarela ligará a tv ou abrirá seus jornais ou revistas e, voilà, um mundo cheio de arco-íris, pôneis-dourados e fadas-madrinhas revelará que tudo era culpa daquele bicho vermelho de treze cabeças, como lá naquele junho de 2013 se decantava (v. aqui).

E, não duvidem, esse bando terá a desfaçatez de ainda dizer: "Ah, viu só?"

Doce e estúpida ilusão, fruto da manipulação que sói acontecer com essa classe média alienada, centrada nos seus umbigos e na sua visão turva da sociedade, da vida e da história.

Mal sabe ela que as chances deste governo interino – porque ilegítimo, traidor, sabotador e formado por nanicos morais e pela mais sujas peças do tabuleiro político nacional (v. aqui– lograr êxito são zero, por mais que cessem a greve do capital e o terrorismo midiático.

Mal sabe ela que esta tropa do golpe – porque sem voto, sem vergonha e sem escrúpulos – abafará e hermeticamente estancará toda a sorte de progresso, inclusive no que tange ao "combate à corrupção" (v. aqui), sempre em nome da medúsica ladainha da ordem (v. aqui).

Todavia, como o problema dessa gente nunca foi a política e as questões que verdadeiramente preocupam e interessam ao nosso país (v. aqui), isso é o que menos lhe importa.

A única coisa que importava era arrancar a fórceps o Partido dos Trabalhadores do poder e, fundamentalmente, acabar com quaisquer vestígios de pautas e programas da esquerda da agenda institucional brasileira.

Eis que, sabe-se lá por quanto tempo, conseguiram. 

E agora, acabou a nossa luta em prol da democracia, da justiça e do Estado de Direito?

Não, camaradas, ela está apenas começando.


Ed ecco verso noi venir per nave
un vecchio, bianco per antico pelo,
gridando: "Guai a voi, anime prave! 
Non isperate mai veder lo cielo:
i’ vegno per menarvi a l’altra riva
ne le tenebre etterne, in caldo e ’n gelo.
(Dante Alighieri, "A Divina Comédia - Inferno", Canto III)



quinta-feira, 5 de maio de 2016

# brazil, 2016



O surreal retrocesso que já vive o Brasil é de dar dó.

Afinal, apagar um estereótipo, se possível, leva um longo tempo... e reapagar?

Historicamente, nosso país sempre fora encarado como “não sério”, por inúmeras razões que não nos cabe descrever.

E foram décadas para, primeiro, assumir definitivamente o protagonismo político-econômico na América Latina; depois, o estratégico papel no BRICS, a posição de liderança na Organização Mundial do Comércio, a expoente atuação em vários organismos multilaterais, a importante presença nos espaços de conflitos globais...

Enfim, frutos de uma “nova visão” da comunidade internacional em relação ao Brasil, que passou a ser merecedor -- ao menos um pouco -- do respeito, porque com respeito tratava as suas instituições.

Contudo, agora joga-se na vala estes últimos vinte anos de uma quase transfiguração, prejudicando a credibilidade do país enquanto nação soberana (instabilidade política), país democrático (desordem institucional) e destino de recursos e investimentos (insegurança jurídica), como se flertasse com um cenário que mistura medievalismo e faroeste.

Hoje não há mais certeza, não há mais lógica, não há mais racionalidade, não há mais certeza de nada.

Pepe Mujica, recentemente, com certa ironia disse que foi um erro o Brasil ter liberado as imagens daquela fatídica e patética sessão dominical da Câmara (v. aqui), afinal, ali foram expostas, para toda a Oropa, França e Bahia, as vísceras de um poder parlamentar putrefato formado por uma maioria de cretinos e hipócritas, revelando, talvez, a maior República da Bananada do planeta.

Mais claro ainda, o mundo inteiro passa a perceber a motivação golpista de todo este processo de impeachment, porquanto absolutamente insustentável e ilegítimo, e de flagrante ruptura da ordem democrática.

Dizem, pois, se tratar de um “suicídio” do Brasil, a esta altura, admitir tamanha desconsideração pela ordem, pelo progresso e pelo Estado Democrático de Direito.

Não, não é suicídio.

Trata-se, sim, de “homicídio”, qualificado, cometido em coautoria pela oposição sem votos, pelas classes reacionárias brasileiras e pelos interesses geopolíticos internacionais.

Como sou um homem de fé, espero enlutado pela nossa ressureição, pela nossa re-existência.

E, blasfemo, farei de tudo para ajudar nesse processo.


Hieronymus Bosch, Christ's Descent Into Limbo, 1575.



segunda-feira, 2 de maio de 2016

# indecência vulgar



Não há dignidade no ato de aceitar o bando que pretende assumir o Brasil.

Todavia, a massa de beócios que mira seus umbigos para enxergar com “naturalidade” que Temer, Cunha e os sem-voto do PSDB vistam a faixa presidencial flerta com a falta de razão, a falta de sanidade e a falta de vergonha na cara, a ultrapassar qualquer prazer de uma mixoscopia sádica.

Não cansamos de repetir: a fonte é um ódio avassalador que tomou conta desta gente (v. aqui) e que dá suporte à maior vigarice da nossa História, como à frente assim se registrará nos livros e nas salas de aula.

Logo, pelos olhos cegos e analfabetos desta turma que tanto me cerca, nada, nada, nada, nada será pior do que manter o “governo-mais-corrupto-da-história” – algo meio slogan, meio jingle, que não sai da cabeça de milhões de brasileiros lobotomizados por uma mídia tradicionalmente nefasta quando em jogo estão os interesses público e popular – no poder.

Uma lástima esse raso e complacente raciocínio,  resultante de uma resistente ignorância  de quem, definitivamente, não quer se atentar para os fatos e para os tempos verbais em que isso tudo foi construído, e que desemboca em contagiante incivilidade.

Ora, o caos institucional que se provoca no Brasil não pode imaginar resolução por meio de quaisquer medidas ilegítimas, incabíveis numa ordem democrática e impraticáveis numa sociedade séria – o perigo, pois, tem proporções de hecatombe.

Por mais culpa que o governo, o PT e Dilma tenham – e têm, haja vista a péssima composição ministerial e a tímida aplicação das pautas da esquerda (v. aqui e aqui) –, são eles quem devem, inclusive como desafio e compromisso de mandato e eleitoral,  procurar os caminhos e oferecer as soluções para isso, com mudanças de pessoas, de planos, de políticas, de princípios programáticos, de projeto etc.

E não outros!

E, especialmente, não esses que são corresponsáveis por este estado caótico, na medida em que traições, revanchismos, vendetas, sabotagens e um explícito boicote institucional – basta verificar  o comportamento absolutamente antirrepublicano e antinacional da Câmara de Deputados no exercício da sua função constitucional nos últimos, pelo menos, dois anos – são notórios na paralisação geral.

E por isso a indecência desta situação toda, que permitirá a assunção desta corja ao poder na base do berro, sem base jurídica e à revelia do voto e da soberania popular.

Afinal, querem discutir "política(s)", como se tratasse de um processo eleitoral, e não "crime(s)" – posto que não há! –, como exige um processo de impeachment.

Ademais, não cabe, como se num lamento mendaz, suspirar pelo surgimento de um salvador da pátria capaz de agregar tudo e todos, numa grande "congregação nacional" e blá-blá-blá...

Ora, antes de se vislumbrar qualquer arremedo de verdade nesta tese-vontade, o que deve ficar claro é que há governo eleito e oposição derrotada.

E isso não se pode esquecer e tão-pouco confundir, porque isso é da política, isso é da democracia – e justamente por isso que uma das coisas que se faz no nosso país é, de quatro em quatro anos, ir "votar".

A propósito, note-se bem: a alternância não é propriamente um princípio fundante da democracia, como resultado, inevitável ou não, do funcionamento pleno do "sistema democrático".

Ou seja, a alternância de poder não se reveste como um atributo ou fundamento da democracia, mas, sim, trata-se de consequência quase natural do debate e da participação políticas em uma sociedade aberta.

Assim, no seu limite, consiste (apenas) em um elemento integrante da "oposição" – e para ela vital, não obstante possa haver oposição sem alternância (e sem poder), quando a oposição é fraca ou mesmo quando o povo está satisfeito com a situação, expondo nas urnas a sua vontade cívica.

Nestes termos, portanto, não há que se falar em "impeachment", em "pacto", em "nova eleição" ou outros eufemismos falsamente legitimadores de uma ideia nacional que deixa de cumprir a estrutura edificante (e retórica?) da democracia: governo do povo, para o povo e eleito pelo povo, tudo sob a estrita obediência à ordem constitucional.

Há que se dar nome aos bois: é golpe.

Golpe que ainda resisto e que, acredito, não passará. 

Se for um copo é um copo / se for um cão é um cão