terça-feira, 30 de dezembro de 2014

# sublimar



E dezembro chegou, e os dias se passaram, e o ano acabou.

Fiquei de escrever o último texto para o (quase) último dia do ano.

E não o fiz -- como está sempre a se dizer por aí, "não tive tempo".

Hoje, por exemplo, fui registrar o nascimento do Santiago.

No caminho, sempre com a inexpugnável pressa, refletia sozinho o quanto os pequenos grandes gestos e momentos da vida estão sendo engolidos por inteiro, a seco, sem passagem e vaporizados, como se subitamente deglutidos, um a um, por um impiedoso ente metafísico que sequer nos impede de pensar "Ôpa, peraí...".

Aos poucos, tudo vai se banalizando de tal forma -- aqui, por sinal, já tratamos de outra "banalização", a da "pobreza" -- que o momento seguinte e o que há de vir tornam-se mais importantes que os grandes acontecimentos em si, anteriores e ainda presentes -- como aqui já observamos.

O importante é a viagem de uma dúzia de dias a tal lugar, o prato ornamental de uma chef tal que num dia qualquer compramos ou as grandes peripécias globais que se regurgitam pelas redes sociais; por outro lado, atropelamos o dia a dia das grandes pequenas coisas mundanas e com as grandes pessoas de nosso mundo ou, soberbamente, deixamos tudo e todos na galeria deste espetáculo que esquecemos não ser eterno (v. aquiaqui e aqui).

E assim caminhamos na ilusão da conveniente batida perfeita, dos flashes das frias noites estrelares e do dia a dia alienado na irrealidade do outro ou do seguinte.

Por isso, no duelo com este falso e indômito cotidiano, trago o registro do nascimento do filho na bainha que empunha a defesa dos fatos e pessoas grandiosamente miúdas.

Ainda que muito particularmente, considero bacana o tal papel -- um "símbolo" -- todo formal, a indicar as duas gerações que carregam o menino que acaba de chegar, a descrever local e hora da vinda ao mundo e, claro, as letras grandes e garrafais que anunciam o seu nome e sobrenomes, os quais hão de serem levados daqui até o clássico "Aqui jaz..."

Ademais, não é apenas a mera condição jurídica da situação, ou apenas a oficial perenidade do nome dado, mas a certidão carrega o fato-símbolo de que o minúsculo ser que hoje guardamos e cultivamos em casa entra civilmente para o mundo dos homens, como o batismo é o ingresso para a cristandade do mundo cristão.

"Mas, e que mundo?", indagava ao reflexo do retrovisor do carro no trajeto ao cartório do bucólico centro desta minha cidade.

Justamente este mundo de agora, cismado por um corre-corre sem-cabeça-nem-pé, por relações pasteurizadas, por uma ultramodernização do afeto, por uma obediência senil às modas e aos modismos, por uma rotina protocolar e asséptica e, a insistência das insistências, pela liquefação do agora e pela sublimação do ontem.

Ora, não se vê nossos pequenos grandes momentos e nossas grandes pessoas como "sublimes" circunstâncias da nossa vida.

Num tempo em que o espaço se virtualizou, se esmerilhou e que de tão grande se tornou uma concha, vê-se um dia a dia (de)composto em partículas que seu suspendem pelo ar.

Vira, hoje, tudo pó.

Pó que ao final de cada ano comemoramos como cinzas de um passado que ainda mal pulsa no presente.

Pó que a cada início de ano comemoramos como poeira fecundante de um futuro que ainda nem se preparou para o passado.

Pobre de nós que insistimos em não dar valor aos nossos pequenos grandes momentos do agora.

E nem às poucas e tão grandes pessoas que conosco vivem este nosso tempo.

Feliz e sublime 2015!


Torta de Santiago, trazida por uma amada irmã 
para consolidar o primeiro pequeno grande momento do dia.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

# surdos e bocas



As pessoas não estão dispostas a ouvir.

E as que ouvem, ouvem aquilo que lhes apetece, aquilo que lhes deixa na zona do conforto, aquilo que lhes evitam pensar, refletir, aquilo, enfim, que as fazem senhoras da situação.

Por outro lado, as pessoas querem "falar", se acotovelam no falar a esmo, se lambuzam de frases feitas (como aqui) e se contorcem para tentar confirmar tudo e aparentar tudo saber. 

E por terem vergonha do silêncio contemplador -- que escuta para refletir e propor --, tornam-se matracas do vazio, do oco, do vão, do estéril.

Esta gente, pois, raramente ousa discutir este " saber" -- evidentemente, é claro.

Por isso, o que mais se vê é aquele sem números de interlocutores fingindo escutar, a balançar repetidamente a cabeça de modo a concordar com o que (não) se ouve e assim acabar rapidamente com a conversa. 

Talvez isso seja parte desta geração networking, google ou selfie made, a qual insiste em se antenar em tudo mas alienar-se no nada.

Infelizmente, rodas sérias de grandes conversas -- que jamais precisariam se limitar ao meio acadêmico ou, cruz-credo, num outro tipo de ambiente de trabalho -- em mesas de bar, em salas de jantar ou em qualquer lugar do microcosmo da vida estão cada vez mais raras.

Afora a ânsia de só-falar ou de não-querer-discutir-por-não-concordar-e-não-conseguir-argumentar, este comportamento repelente e ensimesmado reflete a impaciência pelo controverso, a intolerância ao desconhecido, o preconceito pelo novo, o rancor pelo alheio e a soberba do ego.

São indigentes do processo de conhecimento, a desprezar um dos mais caros legados gregos: a dialética.

Sim, este "caminho entre as ideias" -- em cujas lógicas de aparente conflito extrai-se o aprendizado --, revela-se algo cada vez mais distante da nossa sociedade.

A revelar um comportamento que cada vez mais aproxima ao dos outros bichos.

Mas, em nosso caso, como ventríloquos enjaulados em egocêntricas e impermeáveis vitrines.



 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

# o segundo

 
Um segundo filho não muda a vida -- a vida é que muda esse segundo filho.
 
Mais serenos, mais certos, mais seguros, mais racionais.
 
Enfim, somos mais pais por conta desta nova vida.
 
Restamo-nos mais independentes, mais autorais, mais confiantes, mais convictos.
 
Tudo flui menos laboratorial e tudo acontece com mais naturalidade, inclusive os sobressaltos.
 
Sem cerimônias e sem firulas, o segundo filho te madura.
 
E te envelhece.
 
E isso te muda, para além da aparência com menos cabelos e mais rugas.
 
E te conforta no aparente alívio do futuro.
 
Afinal, a pouca lógica da nossa cronologia permite esperar que no nosso adeus o primeiro, até então único, não chorará só.
 
Ali, naquela hora -- e sempre --, vestido sob o mesmo sangue e a mesma dor, encontrará o ombro e o abraço fraternal para dividir o vazio da perda.
 
Estranho tudo isso.
 
Deslumbrados com a vida que nos apresenta, já pensamos no porvir.
 
Extasiados com o nascimento que nos chega, já ousamos imaginar o nosso fim.
 
É o ciclo da nossa breve existência.
 
 
 
 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

# sabiá e o meu ser de então (fragmentos)

 
 
Não há, oh gente, nem luar e nem nada como na minha Pasárgada.
 
Lá, onde tenho a mulher que eu quero com os filhos que acolherei.
 
É que em Maracangalha, onde de chapéu de palha estou, ainda me sinto um forasteiro, um cowboy fora da minha lei, aquela em que a gente era obrigado a ser feliz.
 
Afinal, disse o conterrâneo poeta, pinheiro não se transplanta, embora o quintal em mar desta Copacabana diariamente se esmere em docemente regar as mudas que dele ali crescem.
 
E agora, neste avião que com razão corro para pegar, vejo chegar de saudade, numa realidade em que sem ela e sem eles já não mais pode ser.
 
E muito em breve como um dia vejo um berço e eu a me debruçar sobre o novo filho que virá, com o pranto a me correr num sonho lindo de morrer -- é querido, não só parece que te direi te amo, pois ainda que afobado não lembre você haverá de saber que eu sempre vou te amar, e chorar a cada ausência e presença suas.
 
E neste moinho da vida hoje triturarei toda a mesquinhez desta distância que me cobre tudo, em chumbo, e que só o coração pode entender, e derreter.
 
Vou voltar, e a solidão vai se acabar.
 
Num acalanto longe do adeus.
 
 
 
 

sábado, 15 de novembro de 2014

# guerra e paz



Trata-se de uma situação como a do ovo e da galinha: quem veio primeiro, o corrupto ou o corruptor?

Mas, se porventura não queiramos ter a mesma dúvida criacionista e sobre ela buscar a metafísica da questão  o que, ao meu ver, passa pela discussão da natureza humana e dos valores desta sociedade, fetichizada na riqueza material, como aqui, aqui, aqui e aqui dissemos , vê-se que a solução está na artificial existência siamesa de interesses públicos e privados, de Estado e capital, de política e business.

Ora, se a política continua na sombra corruptora do dinheiro, o dinheiro continua à sombra da política, como aqui se disse.

Historicamente, assim se fez boa parcela das maiores fortunas do Brasil adentro; e assim se faz em Brasília, assim se faz na Petrobras, assim se faz no Rio, em Curitiba, em Araucária..., enfim, a grande parte da massa bem-cheirosa que arrota habilidade e desfila competência locupleta-se roubando do Estado.

Mancomuna-se com agentes públicos ou políticos, e se entope de privilegiadas informações e polpudos contratos; ajeita-se com juízes, promotores ou policiais, e se farta de doces e convenientes decisões jurídicas  aqui, inclusive, lembramos desta entrega total dos pseudocapitalistas à tal farra...

E se chega nesta sexta-feira, e parece que finalmente o Brasil escancara este outro lado da moeda   v. aqui.

O país parece ter cansado de ser hipócrita e põe na janela o lado antes engomado e poliglota, o lado meritocrático, o lado eficiente, o lado que produzia, o lado sério e imaculado que se obrigava a participar da picaretagem nacional.

Eram vítimas, quando muito, como se insiste em dizer.

Na verdade, eram invisíveis no assunto corrupção, pois sempre muito bem escondidos pelos nossos poderes estatais e, claro, pela grande mídia.

Hoje, escancarado está que ao lado dos canalhas que desdizem o juramento à defesa e à promoção do interesse público, da ética e da legalidade, estão outros bandidos que, embora não jurem nada disso  "it's business, stupid!", dir-se-ia por aqui , jamais poderiam agir como a inocente donzela que involuntariamente morde a maçã da bruxa.

Hoje, se alguns políticos e servidores públicos e as cúpulas partidárias que estão ou estiveram no poder afundam-se neste que talvez seja um bom momento da República, levam junto, como um Caronte infernizado, parte dos magnatas brasileiros que jamais honraram as calças do capitalismo que vestiam   eis, pois, o grande mérito do Governo Dilma.

E atente-se.

Tem muito, muito mais por aí e para além das já tradicionais "empreiteiras"  lembre-se aqui e aqui de casos recentes envolvendo este bando, sempre a empreender com metodologia similar ao tal "Clube" de agora (v. aqui e, num vaticínio acerca das "donas de um monte de coisas"aqui).

É hora de mexer no vespeiro do transporte público  das empresas de metrôs, trens e ônibus (v. aqui e aqui)  , dos serviços regulados e de outras tantas concessões que, nas mãos de síndicos ilegítimos da res publica, são tão nefastas e contrárias ao interesse público.

É hora de encarar de frente, e com a honestidade técnica e intelectual que merece, o modus operandi de agências reguladoras e de parcerias público-privadas tão nocivas à sociedade.

É hora de a Presidenta Dilma aparecer em rede nacional, semanalmente, para mostrar o que faz e o que fará para mudar o país nesta matéria  que, repitamos, não é a mais crítica do Brasil e nem nos deve merecer as mais profundas ilusões republicanas.

Afinal, meus amigos, ela mais uma vez prova: corrupção não se combate com mera retórica (v. aqui) e, principalmente, nem com embustes cinematográficos como essa "Operação Lava Jato", que nasce com (desvio de) finalidade e (conveniente) final: a caçada vermelha, com fins soturnos e antidemocráticos.

E, por isso, doravante teremos uma guerra  como disse Dilma, "não vou deixar ficar pedra sobre pedra" (v. aqui).

Ora, embora se saiba que qualquer coisa que aspire tornar o mundo e as pessoas menos complexos, menos paradoxais e menos variados esteja a cometer uma pequena calúnia com a realidade, posto que são múltiplas as realidades  inclusive no mundo das relações público-privadas , "esta" realidade finalmente  veio ao sol.

E este sol exige obrigações e saídas, pois como disse Kafka em um dos seus aforismos, "de um ponto determinado em diante não há mais retorno; esse é o ponto a ser alcançado".

E sem retrocesso, porquanto inadmissível para um novo Brasil, os interesses a serem enfrentados  mais ou menos dissimulados, ocultos ou escancarados  serão muitos e o desafio será hercúleo.

Portanto, se o Judiciário  se sob uma autêntica independência e justa observação do Executivo e do Legislativo  chegar a algum lugar certo, imparcial e que alcance a todos, trata-se de uma empreitada histórica e valiosa.

Por isso, se é a "paz perpétua" que a nossa sociedade deseja, preparemo-nos para a guerra.

Tal qual no ditado latino: si vis pacem, para bellum.

Sem máscaras, sem medo.

E com o coração valente, para lutar contra tudo e todos.



sexta-feira, 14 de novembro de 2014

# aspas (xlv)



No final de outubro, no Vaticano, ocorreu o "Encontro Mundial dos Movimentos Populares", presidido pelo Papa Francisco e com a presença dos representantes dos maiores movimentos sociais do planeta.


Do Sumo Sacerdote já falamos muito -- aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo --, mas nunca será demais.

A cada ato, a cada discurso, a cada gesto, a cada manifestação e a cada decisão como representante máximo da Igreja Católica ou como Chefe de Estado, Papa Francisco diviniza a nossa espécie, orgulhando-nos.

No seu discurso neste Encontro, centrou-se em três palavras: "terra, teto e trabalho".

E não titubeou em criticar o capitalismo, o neoliberalismo e a sociedade de consumo, bem como não se furtou a defender a economia solidária, as políticas públicas, populares e populistas e a reforma agrária (como inclusive aqui já o fizera, ano passado, novamente na presença do líder do MST).

Enfim, Papa Francisco não quer dourar a pílula, não quer manter aparências, não quer ser peça decorativa de uma civilização e não quer figurar como nota de rodapé da história -- afinal, quer seguir à risca o conselho que deixou aos jovens na última Jornada Mundial da Juventude: "Sejam revolucionários!".

Abaixo, trechos do que disse o magnífico Francisco.

Palavras, pois, a serem talhadas em muros mundo afora (aqui, na íntegra).


"(...) Eu estou contente por estar no meio de vocês.
Aliás, vou lhes fazer uma confidência: é a primeira vez que eu desço aqui [na Aula Velha do Sínodo], nunca tinha vindo. Como lhes dizia, tenho muita alegria e lhes dou calorosas boas-vindas.
Obrigado por terem aceitado este convite para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo hoje, vocês, que sofrem em carne própria a desigualdade e a exclusão.
Este encontro de Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada.
Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela!
Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos.
Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar.
Isso é meio perigoso.
Vocês sentem que os pobres já não esperam e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer. (...)
Este encontro nosso não responde a uma ideologia. Vocês não trabalham com ideias, trabalham com realidades como as que eu mencionei e muitas outras que me contaram... têm os pés no barro, e as mãos, na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta!
Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco.
Talvez porque incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia, é meu projeto.
Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos. (...)
Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho.
É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é "comunista".
Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja. (...)
Vou me deter um pouco sobre cada um deles, porque vocês os escolheram como tema para este encontro.
terra. (...) A apropriação de terras, o desmatamento, a apropriação da água, os agrotóxicos inadequados são alguns dos males que arrancam o homem da sua terra natal. (...)
Eu sei que alguns de vocês reivindicam uma reforma agrária para solucionar alguns desses problemas, e deixem-me dizer-lhes que, em certos países, e aqui cito o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, a reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral (CDSI, 300). (...)
Por favor, continuem com a luta pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos frutos da terra.
Em segundo lugar, teto. (...) Vivemos em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que os assentamentos pobres são marginalizados ou, pior, quer-se erradicá-los! (...).
Vocês sabem que, nos bairros populares, onde muitos de vocês vivem, subsistem valores já esquecidos nos centros enriquecidos. Os assentamentos estão abençoados com uma rica cultura popular: ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos.
Por isso, nem erradicação, nem marginalização: é preciso seguir na linha da integração urbana.
Terceiro, trabalho. Não existe pior pobreza material – urge-me enfatizar isto –, não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho. O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os lucros acima do homem, se o lucro é econômico, sobre a humanidade ou sobre o homem, são efeitos de uma cultura do descarte que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora.
Hoje, ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, "sobrantes".
Essa é a cultura do descarte, e sobre isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o denominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontecesse essa inversão de valores.
Há pouco tempo, eu disse, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas.
Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços das economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados. (...)
Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais.
Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos.
É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E entre todos, enfrentando os conflitos sem ficar presos neles, buscando sempre resolver as tensões para alcançar um plano superior de unidade, de paz e de justiça.
Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a passagem de Mateus 25. Eu disse isso aos jovens no Rio de Janeiro. Com essas duas coisas, vocês têm o programa de ação.
Assim, parece-me importante essa proposta que alguns me compartilharam de que esses movimentos, essas experiências de solidariedade que crescem a partir de baixo, a partir do subsolo do planeta, confluam, estejam mais coordenadas, vão se encontrando, como vocês fizeram nestes dias. (...)
Estamos neste salão, que é o salão do Sínodo velho. Agora há um novo. E sínodo significa precisamente "caminhar juntos": que esse seja um símbolo do processo que vocês começaram e estão levando adiante.
Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal.
A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor.
Eu os acompanho de coração nesse caminho.
Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá.
Queridos irmãos e irmãs: sigam com a sua luta, fazem bem a todos nós.
É como uma bênção de humanidade."

Os papas e um grande Fiel

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

# caiu o muro, não a alternativa





A viuvez que costuma tomar conta da maioria da esquerda mundial quando se fala na queda do Muro do Berlim precisa ser reavaliada e, especialmente, transformada.

Afinal, desde sempre as sociedades indignaram-se, revoltaram-se e insistiram numa alternativa de regime estatal que, antes de tudo, se caracterizasse pela "justiça" – que num sentido aristotélico e cristão representa a igualdade, mas que se contempla na realização equânime dos direitos humanose pela "liberdade" – no seu sentido kantiano, ou seja, assente na própria igualdade.


Há 25 anos – embora, sob o estrito ponto de vista político-econômico, há mais tempo – cessavam-se os efeitos mais imediatos da Revolução Soviética de 1917, a qual, dentre as mais importantes de toda a história universal, definitivamente colocou um tipo de socialismo – a etapa para o comunismo – como efetiva via para o desenvolvimento e para a construção sócio-político-econômica do Estado.


A sair do plano ideológico para assumir-se como fato histórico, o socialismo coloca em cheque pseudodogmas da ideologia liberal vigente, fazendo nascer um novo Estado que passa a objetar e contestar o (sacrossanto) mercado, a (falsa) democracia ocidental, a (desumana) concentração de renda e o (soberano) capital, entre outros temas que, não expurgados, ainda hoje mostram-se, crescentemente, reexaminados e reprovados.

Portanto, as consequências históricas daquele novembro de 1989 não podem ser entendidas como, já há muito propalado, um final da história, de forma que todas as sociedades fiquem à mercê das nefastas e infaustas (e já lutuosas) dinâmicas do sistema que veio querer brutalmente consolidar o capitalismo, na forma onipresente, onisciente e onipresente do “neoliberalismo”.
Por quê?

Ora, além das infindáveis crises que o sistema naturalmente provoca, algumas de gravidade ímpar, como a dos últimos anos, este capitalismo aumenta exponencialmente a desigualdade sócio-econômica mundo afora – v. aqui, em ótimo documentário que mostra os EUA ("Inequality for All") –  e restringe continuamente a liberdade dos povos ou classes mais pobres, negando-lhes o humano acesso à saúde, à moradia, à educação e à alimentação.

Não se pode acreditar – inclusive pelos próprios resultados que a todo o tempo se apresentam – que um sistema apolítico, sem Estado e encrostado na tese da soberania dos mercados possa ter um fim humano, minimamente humano, como se disse aqui, aqui, aqui e aqui.

E mais.

Em termos de regime de governo, a "democracia" que insiste em perdurar mundo afora centra-se num faz-de-conta que, a reboque dos donos do poder, mostra-se refém destes grandes grupos econômicos que abastecem a grande mídia para, livre, leve & solta, ao cabo tentar eleger mandatários dos Estados cujas políticas e ações públicas sirvam-lhes – portanto, não seria uma democracia do povo e para o povo, mas, apenas eleita pelo povo.

E a busca pela confirmação ou construção de um outro caminho é real e urgente – afinal, “there is alternative!”, ao contrário do que pregava a matriarca do neoliberalismo, Margaret Thatcher.

Assim, se Cuba, China e Vietnan, com seus muitos erros e acertos, despontam como os mais antigos países constitucionalmente socialistas do mundo – não obstante a abertura patrocinada pelos dois países asiáticos possa ensejar dúvidas existenciais por parte da esquerda mais apaixonada –, veredas menos traumáticas de alternativas institucionais devem ser imaginadas e implementadas, escapulindo das "necessidades falsas" que Mangabeira Unger ensina.

Logo, ainda que já tenhamos nos modelos de alguns países um consolidado rechaço ao capitalismo democrático (ou da democracia capitalista) ocidental como única via possível para o desenvolvimento e engrandecimento, é na América Latina onde parece tentar se conformar um contra-ponto àquela visão de planificação absoluta e, principalmente, uma alternativa ao capitalismo pós-moderno que raquitiza  a democracia, deifica o mercado e mercantiliza a vida.

Sem a sombra da derrota do leste europeu, essa nova América Latina que desponta – com Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil, Argentina, Uruguai, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica..., embora ainda com sensíveis diferenças de progressismo em seu interior – faz revigorar as certezas de uma esquerda que parecia desmotivada com o isolacionismo retrô cubano ou enganada pela enviesada propaganda midiática que esconde um dos lados do híbrido sistema político-econômico chinês.

Mais do que isso, faz materializar o eco de uma esquerda que luta pelo irretornável caminho progressista, cujas ideias fazem sobrepor a solidariedade social ao "darwinismo social", o Estado protetor ao "Estado predador" e o interesse público ao "interesse privado".

Hoje, a grande comemoração que o capitalismo, as democracias ocidentais e, maiormente, a direita promovem, deve, sim, servir à esquerda de lição histórica, a fim de evitar que os mesmos erros, as mesmas teimosias e as mesmas alianças se repitam; contudo, jamais pode significar a impossibilidade de se construir um novo e admirável mundo.

Sem o muro?
Sim, mas, principalmente, sem o grande muro social que, a fim de isolar a minoria encastelada, amontoa nas periferias e nos grotões das cidades a grande maioria da população que, continuamente, vê negada os seus direitos humanos fundamentais e distante a esfinge da justiça, ainda soterrada pela parte de cima da pirâmide social.



Trailer do thriller em que vive a sociedade americana





domingo, 9 de novembro de 2014

# e assim caminha a humanidade (xxii)



Enquanto isso, num festivo e agradável churrasco, o anfitrião inoportunamente fuça num dos gadgets à mão e saca a piada que virtualmente recebe:

- "Se não passar no ENEM, faz um neném que Bolsa Família você tem...".

Alguns poucos deram uma risada meio amarela, outros não ouviram, e ele insistia em repetir o dichote.

E insiste de novo.

E, pela quarta e última vez, insiste.

Não percebe, portanto, que o chiste, além de sem-vergonha, padece de absoluto preconceito, ignorância e, claro, ódio.

"Sem-vergonha" porque monta rima pobre de marré, marré, marré, inapta para qualquer ambiente com cidadãos absolutamente capazes e com trinta e dois dentes.

"Preconceito" que advém da "ignorância" sobre a existência, as razões, o funcionamento, os condicionantes e os reflexos da brava ação (ENEM) e do excelente programa (Bolsa Família) do Governo Federal, ambos já discutidos aqui e aqui.

E "ódio" porque este sentimento, afinal, costuma escorrer no canto da verborragia da elite nativa, como típico instinto da luta de castas -- v. aqui.

Mas tudo isso, claro, pode ser encarado como exagero ou falta de esportividade de minha parte ao não entender ou desgostar do gracejo social.

Sim, aquelas convenientes reticências ou a útil conotação que residualmente os piadistas se socorrem são capazes de fingir levar o caso na mera, doce e cândida brincadeira.

Para ao cabo inverter o lado criticável e sem graça da mesa.



sexta-feira, 31 de outubro de 2014

# heroicizar

 
 
Benjamin fará amanhã – que parece nunca chegar – dois anos.
 
Aqui, longe, nesta outra cidade deste outro Estado desta outra região do nosso mesmo país, atropelo-me na imensa solidão do areal de Copacabana para na cabeça dele tentar entrar.
 
Ele ainda pouco sabe de tudo.
 
E talvez por isso – vá saber –, ele pode imaginar o que bem quiser.
 
E por isso ardo em aflição.
 
O que será que ele imagina de mim?
 
Afinal, assim como ele acredita em dragão, dinossauro, pirata de olho-de-vidro e numa lunática esponja amarela, ele deve acreditar neste super-homem aqui.
 
No dia a dia, olha-me como se visse um ser capaz de voar, de não ter dor, de ter toda a força do mundo, de escolher sempre os melhores caminhos, de parar o trânsito, de saber sobre tudo o que não para de falar, de saltar tsunamis que arrebentam nas nossas pernas, de num toque de botão mágico fazer notas brotarem numa boca de caixa, de se esticar como borracha para chegar ao teto de tudo, de chutar uma bola e manusear esquadros como nenhum outro ser do planeta é capaz de fazer...
 
Enfim, imagina alguém mais-que-perfeito, alguém superlativo, alguém hiperbólico, alguém coletivo em si mesmo – isso, ele me vê como uma espécie de batalhão, de nuvem, de cáfila, de alcateia de um homem só.
 
E acredita em mim como um eu que não devo ser.
Na verdade, não sei o que ele gostaria que eu fosse -- e não ser o herói que ele hoje sonha talvez até me frustre.
Ensimesmo, entretanto, eu prefiro não acreditar nisso.
 
E, para continuar tentando fazer de mim este personagem mítico, não ouso abusar das fantasias.
 
Tento, originalmente, usar apenas a alma de pai.
 
 
 
 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

# cegos e surdos



A hipócrita esquizofrenia do Congresso Nacional -- o nosso Poder Legislativo -- é de dar dó. 
 
Dó da população, é claro.
 
Naquele tal junho de 2013 (v. aqui e aqui), o pouco de real e verdadeiro que se pôde extrair das ruas foi que a população queria ser vista e ouvida, queria participar e colaborar nas ações públicas e na gestão da coisa pública.
 
O sinal foi claro, cintilante: a democracia exige mais que a mera representação.
 
E assim o Governo -- o Poder Executivo -- agiu, criando o Decreto nº 8.243/2014, que institui a "Política Nacional de Participação Social" (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) -- v. aqui o ato normativo e aqui ele muito bem resumido.

Com ele, a gestão pública mostra-se mais aberta ao diálogo e às demandas de movimentos sociais e da sociedade civil.
 
Sim, a "sociedade civil" -- e até abstraímos os movimentos sociais, que realmente exigem maior articulação e invariavelmente podem sofrer sob o poder das suas lideranças. 
 
Mas falamos da "sociedade civil": eu, tu, eles, nós, o bombeiro, o carteiro, o pescador, o professor, a parteira, a cozinheira, a dançarina, a vascaína... ou seja, a "sociedade", que, afinal, é a sociedade.
 
Entretanto, acreditem, o óbvio ululante não parece soar tão lógico assim para a turma que baba a ignorância do ódio e que está reproduzida nos editoriais, nas capas e nas cartas dos jornalões.
 
Junto a esta baba, moços e moçoilas da nossa Câmara de Deputados rejeitam -- e do nosso Senado rejeitarão --, com constrangedor orgulho, o Decreto.
 
E votam contra.
 
Não o querem.

Afinal, ora pois, a democracia sempre teve medo do povo -- e a direita tem especialmente medo da democracia, como aqui analisou Paul Krugman.
 
E a maioria do Congresso Nacional crê nisso, de verdade, uma vez que é difícil acreditar que refutaram o Decreto como mera estratégia política para mostrar ao Governo reeleito "quem é que manda".
 
Ao cabo consideram a medida antidemocrática e inconstitucional.
 
Julgam que tal participação é comunista, chavista, chantagista, xamanista...
 
"É coisa de pornochanchada", os mais exaltados comparam.

E insistem em deixar o povo bem longe do poder, como aqui se explicou.

Vejam, meus caros, que se está a conceder o mínimo do mínimo da mínima abertura política e o clamor é, justamente, ao contrário, revelador manifesto do medo das massas.
 
E vamos além.
  
Tal medida é mero embrião de uma democracia que já se vê desgastada, enfraquecida e desacreditada -- é a pequena solução para a tal "crise de representação".
 
Esta democracia representativa -- embora essencial e sem qualquer pretensão de deslegitimar a sua capacidade de expressar a soberania popular --, urgentemente exige o diálogo e a convivência contínua e habitual da participação direta, nas formas participativa e deliberativa, como a Presidenta Dilma está a propor.
 
A construção destes novos espaços democráticos e o ingresso de novos atores políticos e sociais apartidários -- ao contrário do que se está a anunciar -- apenas fortalece a representação popular e as instituições republicanas. 
 
Ora, a partir da Constituição de 1988, os governos que se seguiram -- especialmente na gestão Lula -- têm institucionalizado a participação e deliberação popular, nas formas mais tradicionais, como o referendo e o plebiscito, ou naquelas menos conhecidas, como as conferências nacionais de políticas públicas, os conselhos nacionais e locais, as audiências públicas e as ouvidorias.
 
Porém, como se sabe, tudo muito aquém do que a democracia pode exigir. 
 
E quando se pretende dar um pequeno passo à frente -- mas um grande passo para a sociedade --, de modo a permitir que as pessoas envolvam-se um pouco na formulação, execução, monitoramento e controle de políticas públicas, o avanço é brecado
 
E quando se quer iniciar um processo de entronização do povo nas discussões do Estado, fomentado que os cidadãos participem e deliberem sobre as questões públicas para além do exercício do voto, a ação é bastarda.
 
E quando se busca de permitir que a cidadania e a democracia não se esgotem nas eleições, estimulando a presença participativa e deliberativa da população de forma sistemática e aprimorando a relação do governo com a sociedade, o resultado é broxante.
 
Enfim, bem se sabe que a frustração não pode ser uma novidade na realidade social e política brasileira.
 
Logo, esta imagem da grande mídia e da direita bovina, babando em êxtase diante da  intervenção legislativa que derrotou o Governo e fingindo que não vê e não ouve o povo nas ruas, deve servir como mais outro exemplo de como o jogo deve ser jogado.
 
E de que lado estão as peças neste tabuleiro.