sexta-feira, 3 de junho de 2016

# e o auditório sabe como o elefante se suicida?


Fruto nada proibido do neoliberalismo – e cá no Brasil de cepa demo-tucana –, tem-se a tese de que a função de regulação deve ser prosseguida não propriamente pelo Estado, mas por agências reguladoras independentes, saindo do controle direto e se assentando numa pseudo-equidistância de interesses públicos e privados... 

E agora você dorme ou gargalha.

Ora, esta solução só tenta se justificar porque a velha cantilena liberal entende – e assim age para manipular a consciência popular – que o Estado, declarado por puro preconceito ideológico como incapaz de administrar o setor público da economia – ou se acredita que os setores de telefonia, de energia, de água etc. estão em melhor estado hoje sem o Estado? –, é  também considerado incapaz de exercer bem esta função reguladora, razão pela qual terceiriza para as ditas "agências".

Ao substituírem o Estado no exercício desta função reguladora, as agências concretizam uma poção mágica que contém os ingredientes do dogma liberal, da separação entre Estado e Economia: aquele deve manter-se afastado dessa, porque essa é a esfera privativa dos privados e aquele é uma pura instância política – é, como querem, o “conteúdo mínimo” do “estado mínimo”, na lição do Professor António Avelãs Nunes.

Com o argumento de que as funções das entidades reguladoras são funções meramente  técnicas e não-políticas, o que se pretende é subtrair à esfera da política – ou seja, à competência dos órgãos políticos democraticamente legitimados – a ação destas entidades ditas independentes, alegando-se que só assim se consegue a sua neutralidade.

Só assim – invocam os mais afoitos – o Estado pode ser,  como  regulador, um  "árbitro  imparcial" (ou "neutro", como um sabonete).

E mais: nesta subtração, pressupõe a Política como uma coisa indecorosa, feia, diabólica, uma chaga, uma perigosa praga egípcia reloaded e merecedora do isolamento e confinamento.

Ademais, quer-se trazer a substituição do "Estado democrático" por um "Estado tecnocrático", novamente neutro, governado por pessoas que não pensam em outra coisa que não seja o interesse público, sob os primados da suprema eficiência e retidão... zzzzz...

Parece óbvio que não se pode esperar de um Estado "neutro" – que age segundo critérios técnicos e que rejeita as opções políticas – a definição e execução de políticas públicas, que visam, é claro, a promover interesses públicos e coletivos e escolhas políticas assim comprometidas.

Ora o chamado Estado regulador revela-se, afinal, um estado pseudo-regulador – ou um "pseudo-estado regulador", como sempre sublinhou o Professor Avelãs, inclusive aqui, no seu último livro , um Estado  que renuncia ao exercício desta sua função, a qual é transferida para sacrossantas entidades e agências “independentes”, “politicamente puras”, atuando apenas em função de critérios “técnicos” e com ímpar "eficiência", a sublinhar que o seu ethos radica na "imparcialidade" da atuação sobre o mercado.

Seria, pois, outro ser apolítico, como os amarelinhos que até recentemente desfilavam pelas orlas brasileiras.

Trata-se de um esforço inglório, por ser por demais evidente que essas agências exercem  funções políticas e tomam decisões políticas com importantes repercussões econômicas e sociais.

Na verdade, as autoridades reguladoras independentes vêm chamando (e recebendo) para si parcelas importantes da soberania, flertando com a sobrevivência do próprio Estado de Democrático de Direito, que se vê substituído por essa espécie de estado oligárquico-tecnocrático para atuar sob a chancela de “técnicos especialistas independentes” que “governam” este tipo de “estado”, mas que não é politicamente (e legitimamente) responsável perante ninguém, embora tome decisões que afetam a vida, o bem-estar e os interesses de milhões de pessoas.

E assim, a imitar o caos cívico de hoje, provoca o caos institucional, numa república democrática esquizofrênica em suas partes e funções.

Vários  argumentos  têm  sido  invocados  para  justificar  a regulação  “amiga  do mercado” e a sua entrega a entidades independentes, mas há raros espaços para se debater as múltiplas reservas que vêm sendo levantadas a esta concepção da função reguladora e ao modo como é exercida.

Por quê? Ora, são negócios da China nas mãos de poucos, poucos que controlam toda a mídia, e toda uma grande mídia que não dá lugar a nada que rediscuta o modelo – e o Estado brasileiro enxerga subserviente e calado este estado de coisas. 

Mais do que isso, este Estado (Estado regulador, ou garantidor, ou ativador, ou incentivador, ou contratualizador... são inúmeros os eufemismos) conforma-se como um "super-Estado feudal" – consoante, de novo, acepção do professor coimbrão –, a assegurar aos novos senhores feudais (os parceiros privados das PPPs, as concessionárias...) verdadeiras rendas feudais: em vez de terras, concede-lhes direitos de exploração de bens e serviços públicos ou patrocínios, comprometendo-se, inclusive, a pagar-lhes (com o dinheiro dos tributos cobrados dos “súditos”) o que faltar para complementar as “rendas” contratadas.

É o capitalismo sem falências, fruto deste modelo intervencionista pós-moderno e desenvolvido para aqueles que são “too big to fail” (v. aqui), consoante o mote adotado para livrar da bancorrata parte do sistema financeiro estadunindense pós-crise – esse negócio todo é também mostrado e desenhado nos premiados documentários "Trabalho Interno" (v. aqui) e e "Capitalismo - a Love Story" (v. aqui).

E assim, enfim, neste grande espetáculo, assistimos os seus produtores na incessante busca de tentar disfarçar o estado capitalista com as suas tantas e sempre renovadas vestes, e que agora vem sob o adorno de "estado-regulador" e as suas "agências reguladoras".

Porém, estes mesmos senhores são incapazes de esconder o seu maior propósito: por a nu o Estado, paralisarem-no e asfixiarem-no, provocando a morte da Política e exaltando a ubiquidade onisciente do "Mercado", para aplausos delirantes da galera.

Pois é, até as piadas de Ary Toledo tinham mais graça (e sentido) do que isso.