domingo, 24 de dezembro de 2023

# verbo: revolucionar

 

Por estas bandas, e porque estamos nestes tempos, convém lembrar que amanhã é Natal porque convencionou-se como o nascimento de Jesus.

Jesus, o filho enviado de Deus para a Terra.

E sob esta condição de ser filho de Deus, Jesus não poderia ter escolhido o caminho mais fácil.

“Eu sou o Messias!”, Ele disse.

Porém, nunca Ele se resumiria ao uso da religião para mostrar o caminho e a verdade.

E por isso Jesus foi muito além.

E a religião com o seu papel messiânico – “o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”, como disse o ateu Karl Marx – acabou sendo só um detalhe do que aconteceu naqueles dias na Judeia.

Assim, além de ser o Verbo encarnado, Jesus fez política e a revolução.

Jesus deu corpo ao amor; fez do Verbo a Matéria.

Jesus chega, Jesus chama.

Jesus foi chamego e nunca alheio às chagas em volta.

Jesus não era alienado da opressão e da violência contra o povo.

Ele conhecia as feridas e nela se meteu.

Ele não foi neutro, nem um mero pacifista.

Jesus não foi apenas O Homem porque Jesus foi um homem.

Jesus lutou contra o preconceito, a injustiça e a desigualdade. 

Jesus enfrentou as elites e falou às escâncaras contra o acúmulo material e contra os mercadores de lucros, de juros, de terras e da fé.

Jesus se revoltou contra hipócritas e fariseus, contra sacerdotes e doutores da lei, contra as autoridades romanas, contra as injustiças, o preconceito e a mentira.

Jesus, assim, não teria outro lado para estar, afinal, nunca foi difícil escolher de qual lado ficar.

Jesus esteve ao lado dos pobres, das mulheres, dos camponeses, das minorias e dos marginalizados, estava junto com os enxotados por uma sociedade dividida em "classes". 

Jesus esteve ao lado porque tinha lado.

Jesus defendia a cura de doentes, o cuidado com as coisas da natureza e o bem comum, a comunidade e a comunhão.

Jesus foi preso e torturado pelo que defendia e por quem defendia. 

E foi entre os homens na Terra que Jesus nasceu, viveu e morreu para renascer.

Enfim, andando juntos, Jesus foi o Messias e o Homem; Jesus foi o Verbo e a Revolução.

E, atenção, o Verbo encarnado ser a revolução é esplêndido para a nossa História, significado de mudanças em sentido de paz, sinônimo de transformação em sentido de amor.

E por isso Jesus é a maior e mais bela bússola para as nossas vidas, bússola que aponta para o lado esquerdo do peito.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

# que só tem o sol que a todos cobre



Por que ainda vivemos em um país com índices de desordem relativamente baixos?

Por que não vemos diuturnamente arrastões, avalanches, explosões, sangue e tsunamis de quebradeira e violência pelas praças, praias e pradarias das polis, eminentes sobreviventes dos espaços públicos das nossas cidades?

O olhar e olfato comuns, sob o senso midiático, faz acreditar que estamos todos sofrendo igual.

Mentira.

É a favela e a periferia que vivem sob o diário domínio do medo, num caos e com a selvageria aos borbotões, intrépida e incessantemente batendo às suas portas, dos dois lados: "mocinhos" e "bandidos" atiram para matar.

E, ora, aqui era para ser diferente: isso aqui era para ser muito pior.

Era para ser uma Síria em todos os lugares, uma Faixa de Gaza a todo tempo – e não apenas nas nossas Sírias e Faixas de Gaza de sempre.

Afinal, arromba a retina a brutal e catastrófica desigualdade no Brasil, uma distância medida a anos-luz entre nossos dois mundos, entre as nossas duas cidades-realidades.

Duas sentenças resumem bem este estado de coisas e nos permitem refletir os porquês: primeiro, com Noam Chomsky, quando diz que "a grande maioria da população não sabe o que está acontecendo e sequer sabe que não sabe"; depois, com Leonardo Boff, ao dizer algum tempo atrás que "se os pobres soubessem o que estão preparando para eles, não teríamos ruas suficientes para tanta luta". 

De um lado, ricos, brancos e encastelados em uma vida fidalga que vagueia por um consumo hedonista e que se desbunda na busca da maximização da boa vivência, com seus umbigos como centro de tudo.

Do outro, um contingente de pobres e pretos emputecidos com o cotidiano dantesco que margeia a miséria e que faz suar sangue em busca da mínima sobrevivência, umbilicalmente ligados ao nada periférico.

No primeiro Brasil, a nobreza goza um padrão de vida superior ao daquela parte de um planeta em que o padrão é todos terem, a gozar de uma vida cheia, com mais ou menos exageros – esta nossa elite é a máxima elite de países ricos.

No segundo, a malta estropia-se sob uma ordem social semelhante àquela dos parturidos nos bolsões onde o vazio impera e cujos padrões de desprezo e descaso são, sem exagero, simplesmente trágicos – esta nossa gente é aquela gente das regiões mais miseráveis do planeta.

Por isso repito: neste nosso Brasil, uma desigualdade tão atroz e abismal deveria produzir catarses diárias, inconsequentes e revolucionárias, ataques incondicionais e diuturnos, em todo canto e a cada minuto da madrugada.

Mas não só do outro lado, na terra feita de ninguém para "subcidadãos", no chão batido do subúrbio e sob os tetos de zinco das favelas onde tentam sobreviver contra a violência do Estado, da milícia, do narcotráfico, da sociedade... enfim, contra tudo e todos.

Por isso não falo desta luta; falo do "caos".

E não de um caos particularizado, daquele no qual está mergulhada a massa brasileira invisibilizada.

Eu falo do amplo e generalizado caos.

Sim, o Brasil seria digno de sofrer sob trevas e escuridão infindáveis (v. aqui).

Afinal, não estamos a tratar de nações uniformemente pobres, igualitariamente miseráveis; somos, ao contrário, a sétima maior economia do mundo na qual pulula uma diferença social avassaladora, uma disparidade econômica ultrajante e uma dessemelhança humana quase pecaminosa.

Em suma, falamos de polos positivo e negativo, de dignidade e indignidade, de tudo e nada convivendo juntos, lado a lado, com poucos choques, com poucos sentimentos e com pouca mescla.

E mesmo assim o Brasil de cartão-postal (ainda) não se vê em frangalhos, não é atingido pela pulsante guerra no seu interior e não revela uma revolta bélica – a não ser o de "classe" – incapaz de aceitar este nosso tradicional estado de coisas.

Bem se sabe que há espaços urbanos onde, tal qual na órbita do grande capital, vigem códigos de conduta e ética de convivência alternativos, sob o império da legalidade à la carte, à mercê de regras e instituições paralelas que fazem destas áreas nossas múltiplas sírias.

Mas, mesmo assim, fora destes outros mundos, no "centro" não se nota a descortinação do Direito.

Não se vê a ameaça constante por parte dos excluídos sobre os superincluídos, não se vê a multiplicação de Robins Hoods do bem e do mal – como aqui lembramos – e não se verifica a atuação costumeira de rebeldes sociais em busca do brioche nosso de cada dia, certamente preocupados em tentar comer as migalhas do pão que o diabo amassou.

E por quê? Por que esta bomba-relógio insiste em não explodir nuclearmente? Qual o freio inibitório desta nossa gente?

Há o argumento "policialesco", pela mais desumana presença da força militar no meio das comunidades pobres miseráveis, que mata para impor uma pseudo-ordem e fantasia uma ordem matando. Uma ordem que aprisiona na ilusão da liberdade e prende a torto e a direito para acabar com sonhos e vidas. Mas será que este medo é suficiente para não encorajar a rebeldia da transgressão, haja vista o que está em jogo para toda a abandonada ralé?

Depois, o argumento "religioso", pela fé divina no comportamento honesto que leva à salvação, ou "bíblico", sob a tese já anunciada no Gênesis, naquele longínquo sexto dia ("e criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou"), e com isso temos visto tudo quanto tinha feito, e com isso tem nos parecido que, apesar de tudo e de todos, é muito bom. Ora, se por um lado muito metafísico para suportar toda a carência real de tantos milhões de cidadãos sem nada e absolutamente entregues à própria sorte nascitura, certamente por outro lado o estratégico papel das igrejas neopentecostais na formação psíquico-ideológica deste gente tem lhes abastecido de esperanças para a realização das suas necessidades físicas, o que lhes exige como contraprestação a cessão do corpo e da alma traduzida em obediência e ordem.

O "familiar"? Talvez, mas, não sejamos ingênuos: como os pais, os filhos e e todos os espíritos de outros exemplos intramuros haveriam de ser páreos para tudo o que se vê ao redor de luxo e luxúria?

O "pessoal" e "histórico-antropológico", ou seja, o ethos assente em proposições como a cordialidade, o adoçamento e outras raízes? Balela, eles até ajudam a esclarecer algumas coisas a partir do ofendido, mas nunca do opressor, basta ver o nosso imenso ranço e amargor de quinhentos anos da mais vil exploração.

O "prático-político", pela própria maneira que os progressistas encaram as potenciais chamas de rebelião, geralmente não participando da organização e contestando parte do repertório mais radical que se costuma adotar em manifestações e mobilizações contra a ordem vigente, e assim freiam uma real escalada do caos, unindo-se à fala conservadora? Talvez.

O "educacional" e "cultural", pela ausência de consciência da sua condição e da realidade nacional, resumida na ideia de alienação que faz deste povo incapaz de compreender a estrutura e as engrenagens da nossa sociedade e de se organizar politicamente, e a partir disse rebelar-se? Sim, mas há tantos outros sítios mundo afora com base educacional-cultural similar mas com outra resposta popular. Ademais, a grande massa não pode ver na educação, no trabalho e na vida obreira dos seus pares fontes (e pontes) para o futuro, muito provavelmente incapazes de tirá-la do chão de miséria, de assegurá-la as mais básicas necessidades e de atender ao consumismo platinado que tanto incita o desejo felino de ter para ser.

O "Estado Democrático de Direito", a "Carta Magna", os "códigos", as "consolidações" e os "comitês" de marchas, sindicatos e circos? Um pouco, um pouco, quase nada.

Mas, além, creio que isso tudo possa estar resumido numa ideia maior, absolutamente abrangente (e talvez simples): a "dominação ideológica" tão enraizada nestes trópicos, na qual o dominado não se vê nessa condição e compartilha da "visão de mundo" do dominador, sublimando a luta de classes para em grande medida fatalizar o futuro, aceitar o presente e  naturalizar o passado.

E chego a uma breve, e talvez óbvia porque complexa, conclusão de que tudo se esclarece na reunião de todas estas teses, numa mistura de tons, talantes e tinos que há séculos nos forma: colonização, escravatura e capitalismo.

Algo que, talvez, só assim ajudasse a melhor compreender o sentido pouco notado da nossa imagem e semelhança divina.


A centelha da vida



segunda-feira, 20 de novembro de 2023

# catando conchinhas



Quando no final do séc. XVIII tomaram a Bastilha e adotaram a guilhotina como um peculiar modo de se fazer política, os miseráveis resolveram que o caos deveria arder para todos os lados.

Baionetas, panfletos, passeatas, petições e nas ruas gritos vermelhos contra aquela "ordem" e aquele "progresso".

Quando no início do séc. XXI sujeitos deploráveis migram dos gritos histriônicos e roboticamente calculados da internet para alcançar grandes resultados nas urnas, o recado que se quer é direto: desordem contra o regresso.

Fantasias, memes, mentiras, mimetismos e nas redes sociais vídeos contra-tudo-isso-que-está-aí.

E isso não parte da direita, de conservadores, de liberais, dos donos do capital...

Isso parte de personagens bizarros cujas performances atendem prêt-à-porter o desespero, a desesperança, a cólera e a vida caótica em direção ao abismo de bilhões de pessoas.

Porém, tais sentimentos – e votos – da extrema-direita inexoravelmente caem no colo da direita, de conservadores, de liberais e dos donos do capital.

Por quê? Ora, porque grande parte da esquerda apequenou-se, aburguesou-se e partidarizou-se como um grupo de cinderelas que finge esquecer a abóbora nos esperando do lado de fora do castelo das instituições.

Insistimos no continuísmo da conciliação enquanto o fogo continua soprado de cima para baixo ardendo sem cessar no lombo da massa.

Insistimos no tom de que a virtude está no meio enquanto a imensa base é sufocada sem dó pela parte de cima da pirâmide social.

Insistimos no paz e amor vendido simpaticamente pelos telejornais enquanto o subúrbio, a periferia e as favelas perambulam dia e noite pelos escombros de uma vida que sabe à pus e pólvora.

Insistimos, enfim, em defender este modelo socioeconômico vigente, fingindo acreditar que qualquer adjetivo tornasse-o possível: capitalismo humano, capitalismo sustentável, capitalismo democrático, capitalismo social, capitalismo responsável...

Nesta noite foi na Argentina onde mais um conclamou seu povo dizendo la garantía soy yo, e dela teve apoio: vamos destruir tudo, carajo!

Ora, que perspectivas têm os milhões de jovens num modelo excludente, segregador, individualista e elitista senão quebrar a coisa toda para depois transmitir em algum live que dê engajamento e moedas?

Ora, que saídas têm os milhões de adultos numa ordem social cujo máximo que pode prometer é uma espécie de " bricolagem social", como se o mundo possível fosse uma mistura de Uber com Leroy Merlin?

Enquanto nosotros procuramos oferecer pílulas (ou seriam supositórios?) para uso homeopático da população, a direita propõe bombas atômicas que o eleitorado curte e compra sem saber que são de festim.

A esquerda engomada, dentro das suas vestes burocratas e das suas pautas mezzo lá, mezzo cá, com seus apoiadores cirandeiros e seus yuppies que acendem uma vela para o luxo e outra para o Che, sempre será presa fácil para qualquer platelminto que prometa o impossível.

Sim, prometer além, um outro lugar, um não-lugar que parece irrealizável.

Prometer a utopia, tal qual a esquerda sempre o fez, sob um viés revolucionário que se baseava na imaginação e na construção das ideias que transformasse o presente para a existência de um novo futuro.

Acontece que quem hoje promete esta revolução é a direita, aceita sob um misto de esperança e delírio por uma multidão que infelizmente não consegue ver à frente a tragédia da "distopia", pois às cegas só é capaz de fugir do presente visto do retrovisor.

E atenção: a direita faz exitosamente, joga o jogo, colocando em campo um elenco farto para consumo em série do povo.

São tantos homens com bíblias na mão – e ideias espúrias na cabeça  que dão o microfone divino para a massa falar diretamente com Deus, prometendo dinheiro (e a vida eterna); são inúmeras mulheres com câmeras na mão – e nenhuma ideia na cabeça  que medusicamente entoam frases e planos de vida que influenciam ao alcance de um clique, prometendo dinheiro (e a fama eterna); são muitos homens e mulheres da classe média que de dentro dos seus pequenos negócios e dos seus empregos irradiam a lógica privé da mão invisível e do "salve-se quem puder"; são infindáveis juízes, promotores e outras cabeças quadradas da esfera pública que contaminam o público com a ideia de meritocracia e outros contos da carochinha; e são todos os milicos que gritam "selva" da sala de estar e que cortam mãos e cabeças por cargos ou pensões.

E, principalmente, são homens e mulheres com um discurso exemplarmente simplista de (falsa) ruptura, de (falsa) liberdade e de (falsa) luta contra a "ordem" que laça o gado e o cerca nas redes sociais onde ninguém dá a mão pra ninguém, prometendo de modo desconexo mundos e fundos (e a pátria eterna).

Mundo que continuará nas mãos (e nos fundos mais ou menos paradisíacos) de uma única classe: os ricos, sujeitos que encartam e descartam aqueles personagens como marionetes, jagunços ou longa manus dos seus interesses, a nadar de braçada no rentismo, no entreguismo estatal, no extrativismo e nas monoculturas, concentrando renda, riqueza e poder como nunca se viu na Terra  por sinal, eis um lugar que também já não aguenta mais.

Enfim, deve ficar claro: o capitalismo e, a reboque, esta democracia representativa, morreram como arquétipos da ordem política, econômica e social; como zumbis, ambos são cadáveres reanimados na calada das noites por tipos bizarros, cada qual com suas particularidades: hoje foi Milei, ontem foi o Jair, anteontem Trump e amanhã será outro qualquer fantasiado de redentor, louco ou pirofágico, mas que cuidadosamente veste por baixo os reais e sensatos interesses de sempre.

E a esquerda, nesta onda em que insiste navegar, morrerá sempre na praia, catando conchinhas para malabarismos reformistas em um looping de faíscas e apagões.

Por isso, nesta transição gramsciana entre o velho e o novo, a esquerda precisa pôr em marcha (i) a luta de classes sobre o discurso da conciliação e da conformação, (ii) a radicalidade institucional sobre o discurso da pax brasilis e (iii) a transformação do sistema socioeconômico sobre o discurso açucarado de um progressismo liberal que finge dar uma cara legal ao capitalismo.

É necessário, pois, dar a pancada fatal.

Preparar a nova ordem.

E fazê-la nascer, ainda que a fórceps.



quinta-feira, 29 de junho de 2023

# filho maravilha


Encerrar ciclos sempre machuca um pouco.

É a nossa história sendo passada de página, como capítulos encerrados; porém, diferente de um livro, não se pode mais voltar a ler.

Vamos crescendo, vamos mudando e livros vão se fechando. 

E não basta de quando em vez ir à biblioteca para abri-lo, afinal, o tempo não para, nem volta  o que resta são as memórias. 

Não tenho da cabeça estes momentos da minha infância, não sei explicar muito bem por onde ficaram ou foram guardadas.

Mas hoje tive a experiência de viver um destes ciclos fechados por alguém tão de mim no auge dos seus dez anos.

Era a despedida dele do seu time de futsal, depois de um intenso convívio, praticamente sem faltas, fizesse chuva ou sol, inclusive nos casamentos de espanhol, que lá antes da pandemia se iniciou, depois se interrompeu e durou até hoje.

Durante a semana já sabíamos que esta quarta-feira seria cheia de abraços tristes e boas recordações, ainda mais para ele que explode em sentimentos desta natureza, rememorando cada canto e cada episódio daquele clube e daquela gente.

Antes de entrar no ginásio, bem notei o seu olhar longe e o respirar fundo, parecia também dar piscadelas como discretos acenos àquele caminho tantas vezes feitos. 

Sei que no seu íntimo imaginário infantil também via uma multidão gritando por ele, sofrendo por ele, agitando lenços brancos de adeus, clamando para que eternamente ficasse.

E eis que ali novamente ele chegou. 

Com toda a inspiração, com muito amor e emoção, mostrando como sempre toda sua força e sua raça, fazia mais um dos seus dedicados treinos. 

Ocorre que nos instantes finais deste seu último coletivo, quis o destino que deixasse o lugar e todo aquele seu pessoal com uma jogada celestial: desarmou antes do meio da quadra, driblou dois, arrancou, deu um toque, driblou o goleiro e, apesar de toda a humildade que lhe caracteriza, entrou com bola e tudo.

Um verdadeiro gol de placa que eu, magnético à beira da quadra, larguei as anotações de praxe para aplaudi-lo  e essa foi provavelmente a primeira fez que o fizera, não por falta de seus méritos, mas pela minha rabugice de king richard que insisto transmitir.

Em seguida o treinador apita o fim do treino. 

E ele percebe que acabou. 

Ao sair da quadra, vem à minha direção cabisbaixo, com muito suor, com todo o corpo vermelho do sangue ainda bem quente e, sem mais segurar, muitas lágrimas.

Um pranto de quem ali tinha confirmado o encerrar de uma boa fase, de uma agenda atlética divertida e moderadamente descompromissada. 

Como conversávamos no caminho, aquilo aconteceria para então abrir caminho para outras novas coisas acontecerem. 

É o "ciclo da vida", como um certo leão-rei já desenhou.

Mas ali não pude lhe dizer mais nada, e nem o momento talvez admitisse, apenas agradeci por ser o filho que é.

Um filho por quem diariamente e cada vez mais me encanto.

Que maravilha, filho.


quinta-feira, 22 de junho de 2023

# demasiado humano


Um ótimo texto trouxe, sob o viés jurídico-político, as explicações para a indicação do Presidente Lula do seu advogado particular para a Suprema Corte.

Mas é preciso ter algumas ressalvas e também enxergar por outro plano o fim desta medida: o dever de dizer que "a política venceu".

A política vencer significa, no caso, reescrever mais uma vez que "Lula venceu".

E por ter vencido, Lula pôde escolher o sujeito que processualmente enfrentou o seu maior algoz, aquele cujo sonho, veja só, era justamente ocupar uma das cadeiras do STF, um desejo pelo qual vez literalmente de tudo para tentar realizar.

Principal alvo da bizarra operação Lava-Jato  como as jornadas de junho, não durou 15 dias nas ruas até ser usada como meio de derrubar um partido político , Lula foi até o fim com esta sua ideia: registrar na história do judiciário brasileiro, de modo definitivo, a derrota do grupo que, por meio do próprio Poder Judiciário, buscava exterminá-lo da vida (pública).

E conseguiu. 

E fez isso do modo mais cinematograficamente sádico possível, numa mistura de genial com visceral, de quem tira um sui generis gremlin da cartola (e do fígado). Algo inimaginável há, veja só, seis anos... O tempo voa e a vida sopra tufões que viram de cabeça pra baixo o presente.

Porém, a que custo isso?

A Constituição determina que um membro do STF deve ter ilibada conduta e notório saber jurídico, sendo prerrogativa do Presidente da República indicar o nome a ser referendado pelo Senado. 

Convenhamos, mesmo no mundo cinzento e ordinário dos operadores do Direito e apesar do nível desastroso das milhões de faculdades de Direito, não são atributos raros de qualquer cidadão minimamente ético e estudioso dispor.

Agora, porém, Lula perde a oportunidade de marcar esta sua vitória contra os picaretas que o trancafiaram por 580 dias  e que permitiram um tipo anticristo assumir o país por 4 anos , abrindo mão de indicar outro nome. 

Mesmo sabendo das curtas rédeas que a democracia brasileira oferece ao comando do Chefe do Executivo, Lula poderia apresentar um grande nome, indiscutível sob o ponto de vista da ciência do Direito e, mais ainda, da luta política que a aplicação do Direito exige.

Um nome vinculado historicamente à esquerda. 

Um nome associado organicamente às lutas sociais. 

Um nome impessoalmente ligado à defesa das grandes causas político-constitucionais. 

Um nome ligado notoriamente ao pensamento jurídico progressista. 

Mas o nome indicado pelo Presidente Lula não parecer dar guarida a tais características. E isso pode, mais ou menos cedo, trazer problemas e prejuízos para quem pretende construir uma sociedade sob uma visão de mundo progressista. 

Ora, o indicado Cristiano Zanin em toda a sua histórica discrição nunca pareceu e nem se comportou como um homem de esquerda, ostensivamente vinculado às pautas e às raízes da esquerda, do ponto de vista jurídico, político, social, econômico... Zanin, na verdade, simplesmente foi advogado de um homem de centro-esquerda. 

Ocorre que a química que forma e fundamenta o mundo e as nossas decisões não dispõe de elementos tão racionais assim. É uma química que não é ciência exata. 

E por isso se compreende a suprema indicação, afinal, Lula é um ser humano.

Humano, demasiado humano.




segunda-feira, 5 de setembro de 2022

# armação ilimitada

 

A armação que o bolsonarismo imporá quarta-feira, 7 de setembro, tem todo o roteiro delineado.

Respirando por aparelhos para as eleições de outubro, Jair e sua trupe não têm outra saída senão desesperadamente criar um fato novo.

Desta vez, a facada será outra. Isso soa como continuação de filme – e é.

O que acontecerá quarta-feira pelas orla de Copacabana será uma tentativa desesperada para, de novo, melar as eleições, vitaminar o gado, ludibriar incautos e, principalmente, iludir o povo indeciso sobre o sue voto.

Em Copacabana, será o prenúncio de um atentado carluxiano: o roubo do bicentenário da República como um desesperado ato para tentar salvar a sua derrotada reeleição. 

Haverá pirofagia com tiros de canhão, malabares com paraquedistas fajutos, jogral com  fragatas de araque, piruetas de teco-tecos, circo da banda militar, muita gente à toa na vida cantando coisas de ódio e um arsenal de mentiras e de falas sem qualquer noção cívica e republicana. 

E é preciso dizer e se precaver para o "fato"; é preciso toda a atenção e a prévia repercussão para mais este faz-de-conta que desestabiliza a pobre democracia brasileira e que culminará na grande mentira: o resultado eleitoral foi fraudado.

Não caberá surpresa, não caberá indignação, não caberá dar crédito para este novo Riocentro que visará, num revival cretino, culpar e criminalizar a "esquerda".

O mesmo terror, mas agora sob outra medida.

Um terror sem graça, sem medo, sem fio na espinha. Um terror à altura deste platelminto que finge governar o país e que, por um aborto da natureza, acabou sendo eleito em 2018  afinal, nunca na história do Brasil se poderia imaginar que um fascista suburbano se tornasse presidente da República.

Um terror tragicômico. Um terror B. Um terror que não assusta. Um terror no qual que se vê o catchup no canto do braço cortado. Um terror pornográfico, daqueles que não há história, só a serra elétrica desesperada correndo pela tela atrás de corpos fragilizados. Um terror fraquinho, sem luz, sem foco, sem graça. Um terror que merece a lata do lixo.

Aqueles mesmos personagens de sempre, com os mesmos cartazes, as mesmas frases-feitas e a mesma obtusidade, a mesma má-fé, a mesma perversidade, agora adornados com helicópteros, tanques, cavalos e canhões, colocados na orla carioca como se todos brincassem de forte-apache.

Quantos serão convencidos por esta armação? Quantos entrarão em modo desespero e com isso repugnarão o "ataque", mudando o voto? Como se comportará a grande mídia na sua eterna postura de dar equivalência a este grupelho de extrema-direita e todo o campo democrática de centro-esquerda? Para que lado a grana penderá diante desta arapuca?

O bolsonarismo, a curto prazo – uma vez que com a derrota presidencial a sua amplitude e força serão significativamente reduzidas –, será devolvido ao esgoto e aos porões da sociedade; porém, na quarta-feira, tentará demonstrar brio, conquistar piedade e simular seriedade como último blefe. 

Não conseguirão.

Como disse Marx, a história se repete, na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa.

O caso, nesta quarta-feira, será mais do que farsesco – será patético.

E não irá parar por aí.

Dia 2 de outubro, após o resultado eleitoral com a provável vitória de Lula no primeiro turno, toda a claque bolsonarista – milicos aposentados, familícias e uma fauna que passou a ocupar as redes e as ruas a partir das passeatas de junho  já está devidamente guiada para causar o caos, com muita violência, armando o terror nos grandes centros urbanos sem quaisquer limites.

O fim? Salvaguardar a todo custo a pele do seu mito de pés de bosta no qual se espelham.



quarta-feira, 13 de abril de 2022

# jair, um anticristo


A projeção do mal sobre um deus, um ser vivo ou um objeto é fenômeno recorrente na história da humanidade e ainda nos acompanha ao longo da existência, desde a bruxa malvada dos contos de fadas até as interpretações cinematográficas de personagens demoníacos.

Por isso, na semana mais importante e crucial do ano cristão, carregada de fascinantes simbolismos, é oportuno dizer: Jair dá forma humana ao mal, é um anticristo.

E, atenção, não digo isso como mera retórica, nem figura de linguagem, tão pouco, como precavia Hegel, um exagero no argumento que prejudica a causa. 

Logo, no seu mais relevante perfil escatológico, repito que Jair é um anticristo, talvez a forma da fôrma que, por certas horas, Deus considerou ter dado errado, como se diz no Gênesis ("e o Senhor arrepende-se de ter feito o homem na terra").

Não se trata, adiante-se, de se reconhecer as mais ou menos complexas circunstâncias sociais, políticas e morais responsáveis pela sua chegada ao poder, até porque há na história diversos animálculos cujas ideias, discursos e ações dignificam minimamente o ser humano; aqui, pois, diríamos que o minúsculo ser aparece com outra essência, como se adotasse a fantasia vermiforme para ocultar aquela imagem tão decantada pelo cristianismo: a besta chifrada.

Como se sabe, a figura do anticristo não é singular. 

Ela está em uma categoria de pessoas que se extasiam ao provocar a desgraça, o medo, a iniquidade, a coisificação e a desolação. 

O anticristo nega o Pai, o Filho e o espírito que era o Verbo e a Verdade, que sempre divinizou a vida, que ressignificou a paz, que enalteceu a partilha e o perdão, que pontificou a fraternidade e a igualdade, que engrandeceu a Terra e que priorizou pobres e marginalizados.

Cá entre nós, lutas contra anticristos fictícios, metafísicos ou de carne e osso são frequentes na história, desde priscas eras, opondo ao mal valores fundamentais como a paz e o amor. 

E hoje a figura do anticristo é a concretização da anticivilização. 

Como tal, é um contraponto a elementos – ideias, indivíduos, projetos – considerados absolutamente perversos, nocivos e disruptivos à sociedade, esteja ela em níveis maiores ou menores de ordem e de progresso.

Não por outra razão, o enquadramento moral e (sobre)natural de Jair como um anticristo poderia ser provado por inúmeros gestos e palavras, atos e omissões, no passado e no presente, de maior ou menor gravidade, de ampla ou restrita repercussão, nos mais diversos aspectos da nossa existência.

Jair é um anticristo porque despreza a vida. Ora, que outro sujeito estimula o contágio por um vírus pandêmico em tamanho grau? Quem caçoa o pesar e a tristeza pela perda de mais seiscentas mil pessoas, achando tudo irrelevante? Quem mais acredita no extermínio de diferentes como saída política e de paz social? Quem sacraliza a tortura, faz das prisões um altar e da violência miliciano-policial motivo de devoção? Quem faz com tanta graça e júbilo a apologia da barbárie e do horror cotidianos, como se numa roleta de bem-me-quer e malmequer?

Jair é um anticristo porque despreza a paz. Ora, quem usa armas como símbolo cotidiano, a todo instante trazendo falas e movimentos bélicos de ódio e guerra? Qual sujeito estimula a prática constante da violência, o uso amplo e irrestrito de armamentos e de todo um arsenal como sinal de vitória? Quem rotineiramente ousaria pegar na mão de crianças para fazer sinal de armas e tiros? Qual o indivíduo que gargalha o riso diabólico ao publicar suas taras com rifles, pistolas e quejandos? Quem fala em metralhar e fuzilar como se fossem verbos de uma gramática natural?

Jair é um anticristo porque despreza a compaixão. Afinal, quem mais encarna a crueldade no ato de, ao contrário, desdenhar do outro? Jair é incapaz de sofrer o sofrimento do outro, de se colocar na vida e realidade sofredora do outro, por qualquer que seja essa dor: a morte, a doença, a fome, o desabrigo, o desemprego... Assim, Jair não nutre qualquer "paixão com" o outro; ao contrário, goza da malignidade e da perversão em um dia a dia de todos contra todos, sob o imperativo moral de cada um por si (e o mal por todos), abdicando do aspecto essencial da natureza humana, ou seja, a necessidade de um relacionamento amoroso com os outros. 

Jair é um anticristo porque despreza a verdade. Mentiroso contumaz, faz da patranha um modo de vida. Engana e ludibria sobre tudo e todos, sobretudo os mais carentes de tempo e cognição. Estelionatário da fé pública, decreta sigilo de cem anos em assuntos de interesse público para ocultar a realidade. Mente por todos os lados, como se uma ilha da falsidade onde a verdade não entra para não poder ser conhecida, acorrentando na inverdade seu séquito mais fiel e ignorante.

Jair é um anticristo porque despreza a igualdade, a solidariedade e a comunhão. Dia e noite ele preconiza o anti-igualitarismo, fazendo do país uma sopa de merda, pus e fel. Se não ele, que outro indivíduo seria capaz de, em décadas de atividade política, jamais ter sequer mencionado o mais grave problema social, a concentração de riqueza? Qual sujeito seria tão capaz de agir em prol do racismo, da fome, da seca, do trabalho infantil e da deseducação pública, causas profundas da desigualdade social? Que outro indivíduo revelaria tanta falta de empatia, de sensibilidade e de compreensão dos problemas sociais, senão pode deliberada opção e vontade? Quem mais glorifica o egoísmo do "cada um por si" travestido de liberdade e celebra o individualismo amoral segregante e socialmente desarmônico, frutos da visão narcísica do sujeito "em-si-mesmo-sem-o-outro"?

Jair é um anticristo porque despreza o meio-ambiente, o lugar onde vivemos. A Terra é a nossa casa, e a nossa terra é a nossa sala, um lugar avassaladoramente devastado para uma boiada poder passar e pastar. Quem mais desregulamenta, flexibiliza, despenaliza, liberaliza e privatiza toda uma agenda ambiental, sob a sanha de fazer da ecologia um tema ideológico e da natureza um espaço propício à destruição, ao desmatamento, ao garimpo, à monocultura, ao latifúndio... como se numa medieval cruzada antiambiental?  

Jair é um anticristo porque despreza os fracos, as minorias e os oprimidos. Como um "homem da inequidade", lambuza-se ao ver o desemprego e o desespero de sem-teto e sem-terra, ofendendo a doutrina social do Papa Francisco presente em sua encíclica Fratelli tutti“terra, teto e trabalho”. Não exalta os humilhados, mas humilha as pessoas fora das normas binárias de gênero e sexo e as comunidades indígenas e quilombolas. Faz da mulher um objeto adâmico, compreende a luta do povo negro como choro de perdedor e entusiasma-se com suas próprias palavras: as minorias devem se enquadrar à sua visão de mundo – ou então desaparecer.

Jair é um anticristo porque despreza a família. Ora, quem mais desconhece o espírito familiar senão um sujeito que propaga a idealização de uma família erguida sobre um moralismo de quinta-categoria que não se sustenta à brisa da manhã porque repleto de múltiplas transgressões? Quem é o sujeito que faz dos filhos projetos vis de homem e cidadão, construídos à sua imagem e semelhança? Quem mais faz das ex-mulheres um harém de negociatas e túmulos vivos de histórias que vão de aborto a traições? Qual sujeito cerca a sua gente de tanta gente sem virtudes e integridade, sempre sob o culto da "tradição"? 

Jair é um anticristo porque despreza as relações humanas e políticas. Quem reiteradamente exalta uma antipolítica que ignora o debate de ideias, a oitiva de opiniões e o respeito às ciências como se fosse onisciente e onipotente? Qual o sujeito que ignora as fronteiras do público e do privado, do justo e do injusto, do certo e do errado em benefício exclusivo dos seus pares? Quem como nunca militariza e policia todo um aparato republicano como fetiche de forte apache? Quem mais desconhece qualquer caráter e pudor para se assumir como um avatar trágico e cruel das elites que liquidam o Brasil, senão um sujeito cuja essência é anticrística?

Enfim, Jair é um anticristo porque encarna o espectro do mal em sua totalidade, em cada um dos relacionamentos, dos atos e das palavras que estabelece e promove na sua trajetória de vida. 

Para além da sua concretude social e política, objetivamente manifestada, tamanha consciência para degradar a existência humana é resultado de quem vive o mal como categoria moral, arquétipo de um agente desumanizado que vagueia no infértil campo do ódio. 

Sim, nele há a prática do mal intencional, radical, torpe e profundo, símbolo da força e da energia que negam o evangelho de Cristo.  

E é preciso um basta, um expurgo das ações, das palavras e do pensamento que carregam a mensagem das sombras, da desgraça e do caos. 

Não por outra razão, o advento da paz passa por uma vitória sobre este anticristo e sua seita.

Afinal, como se disse, tirar Jair do poder não será apenas um ato político – será um redentor ato de amor.


Pastor Henrique Vieira e Emicida: o amor é o segredo de tudo



terça-feira, 24 de agosto de 2021

# e la nave va


Pela editora da UFSM, acaba de ser publicada minha tese de doutoramento (UFF/2018), um manifesto devidamente adaptado para chegar fora do meio acadêmico, agora sob o título: "Ricos & Malandros  A riqueza na estrutura da desigualdade brasileira: como os ricos atuam na sociedade".

Deixo a seguir o posfácio da obra.


E LA NAVE VA

(POSFÁCIO)

 

Em outubro de 2018 – dois meses após a defesa em banca examinadora da tese de doutorado da qual este livro é fruto – a nossa distopia sopra ares surreais ao ver eleita presidente uma aberração saída dos grotões do baixo clero parlamentar e saudada nos porões da ditadura cívico-militar.

Bizarramente, pelos próximos quatro anos a República seria ocupada por um dublê de abantesma obsessor: lasciate ogni speranzavoi ch'entrate”, passaria a ser gravado nas areias do litoral da Bahia para quem aqui desembarcasse.

À sombra desta assombração arregimentou-se grande parte da elite brasileira, disposta a articular (e distorcer) aquele protesto popular em prol dos seus interesses, a fim de manter benefícios e privilégios ainda que sob um cenário de guerra, em uma terra que hoje – mais do que nunca – condensa táticas de faroeste, técnicas de manicômio, taras de ditadura e totens eugênicos com vistas a dizimar os dispensáveis da razão neoliberal desta ordem capitalista.

A mudança na dialética social do Brasil – que perpassa pela religiosidade neopentecostal, a desconstrução do operariado sindical, a fetichização dos costumes, os valores liberais não identitários e a reorganização urbana da periferia – traduziu-se em um “fenômeno epidemiológico” que saiu das redes sociais e contagiou as urnas, assinalando o estado da nossa decadência moral e política e, principalmente, o ressentimento desesperado da massa brasileira que naquela imagem de meganha tosco e boquirroto imaginava um “mito”.

Neste processo, a classe dos “intocáveis” sempre fingiu isenção, admitindo as trevas de algo tipo governo: inepto e indecente, armado e desalmado, capenga e enjambrado, sem luz e sem lógica democrática, sem programas e sem propósito social, tudo num planalto cujo cenário associaria o astral de banheiro químico com a graça de uma necrópole.

Fingiu eximição, admitindo um modelo de sociedade baseado na precariedade, na expropriação e na violência oficial, objeto da conjugação infausta de neoliberalismo com submilitarismo.

Fingiu sublimação, admitindo viver no fio da navalha do obscurantismo regido pelas vontades de uma gente perigosamente medíocre e enfaticamente lunática cujo método é a mentira e cuja bússola, o ódio.

Fingiu esperança, admitindo ver o caos institucional e o colapso socioeconômico, sem ordem e sem progresso, sem ações e sem recursos, sem vida e sem negócios.

Fingiu. E finge. Finge sob as máscaras venezianas de quem parece desfilar em seu próprio e seleto carnaval, como sói acontecer com os brancos e azedos malandros da contemporaneidade.

Notoriamente, a “aliança siamesa” entre endinheirados e empoderados de novo revela a plena disposição que as nossas elites têm, histérica e historicamente, em não medir esforços para ofuscar a realidade e dissimular as causas e as razões da desgraça brasileira que longe passam da “corrupção” da (e na) política, canto medúsico soprado pelo bando que deslavava a jato o Direito e que diariamente ecoava pelos jornais nacionais até chegar aos ouvidos mais incautos e menos conscientes da população.

Ainda, as últimas eleições criminalizaram em grau máximo a política para legitimar um sujeito que passaria a exercer o papel de “antipresidente”, cultivando a mais carcomida política, vinculada a todos os vícios e fraudes que há séculos o Brasil produz e no qual uma seleta casta eterniza-se em leito esplêndido ou nas varandas da casa-grande enquanto invisibiliza a usurpação das riquezas nacionais, a manipulação do mercado e, fundamentalmente, a exploração do trabalho.

Eis a plutocracia brasileira, que se alvoroça em torno do seu títere de ocasião não para domesticá-lo, mas para que áreas caras aos seus interesses sejam cuidadas sob um novo arranjo normativo, na forma de um tratamento à terra, à educação, à saúde, às relações de trabalho, à infraestrutura, ao meio-ambiente, às empresas públicas, aos pequenos negócios e aos movimentos sociais que unem o medieval ao neoliberal e o selvagem ao mafioso, arruinando toda uma agenda tão sensível à maioria da população.

Assim, o horror da desigualdade social – que em 2016 retomara o crescimento de forma calculada e acelerada – imediatamente transformou-se em uma “não-pauta”, absolutamente abandonada da selvagem agenda do presidente eleito, não apenas como sinal do seu déficit humano-civilizacional, mas como resposta ao desejo da elite brasileira de conservar o seu colossal quinhão da renda e da riqueza nacionais como uma eterna capitania hereditária: o “orçamento público”, máquina da qual brotam inúmeros mecanismos de apropriação de dinheiro público – via, especialmente, aprimorados ardis financeiros e bancários – de forma a continuamente renovar o processo de dominação.

A caracterizar universalmente o país como o samba e o futebol, a desigualdade volta a ser relativizada sob falácias liberais e ordens de ajuda motivacionais que enviesam a análise do problema de modo a ofuscar o lado perverso desta equação brasileira, crescentemente concentrado no topo piramidal do reino social, efeitos naturais de um sistema que manifesta seus sintomas de morbidez e decrepitude cujas consequências são escancaradas no dia a dia das nossas cidades.

Enquanto aos ricos (e ao capital) dia a dia são atribuídas feições heroicas e vitoriosas, seja pelos holofotes da grande mídia, seja em declarações oficiais de um obnóxio governo que almeja ser bem falado nos “clubes de golfe”, escondem-se as reais circunstâncias estruturais do subdesenvolvimento e do empobrecimento geral, a fim de que não se conheçam as razões institucionais e ideológicas da guetização de um povo esfacelado.

E justamente nesta estética de zoológico rural e lógica de desordem e retrocesso que caracteriza o momento brasileiro, em 2020 o nosso pandemônio coroa-se com uma “pandemia” cujo maior reflexo é a morte a quilo dos supérfluos humanos – a maioria das nossas periferias –, sinal macabro da vilania debochada e também do desprezo à nossa questão central: a desigualdade social que avisa e determina quem são as nossas grandes vítimas, mero detalhe para a necropolítica e eterno normal para o capitalismo como legítima expressão da barbárie.

E o tempo passa... e ao fundo um rinoceronte enfaixado segue sendo alimentado por nossos barões enquanto bizarramente capitaneia o barco Brasil nesta travessia infernal, com salva-vidas cuidadosamente selados para muito poucos. Até quando?

 

 

Rodrigo Gava

Copacabana, Rio de Janeiro

nas águas amargas de março de 2021



quarta-feira, 2 de outubro de 2019

# lava de chumbo



Esses dias deparei-me com um texto escrito por Osho.

Não o conhecia, até me parecer que, sem desprezar o "valor" das suas técnicas meditativas, seria outro destes gurus que volte e meia surge, no seu caso sob uma seita que parecia juntar coaching, neopentecostalismo hippie, crossfit tântrico e Jim Jones.

Bem, o tal texto  e é disso que quero tratar  falava de solidão, de solitude e do singular espaço e momento a sós.

Descobri este tal "vazio" vagando pela Europa, no meu particular camino santiagués, em profundos setenta e tal dias a rodar de mochila da Ibéria às profundezas do Leste, da Escandinávia aos confins do Adriático, com o centro do "velho mundo" como eixo e a busca do meu "novo centro" como meta.

E nele uma verdade: diante das dificuldades de "ser", são nestas situações que nos pervertermos para abrir os olhos e então conseguir ser, e (se) ver, e (se) enxergar, e (se) reparar, e se (re)encontrar. 

Peregrino, senti ultrapassar os limites da "solitude".

Lá, uma solidão sem fim abria espaço para tudo e, perigosa, levava à torrente intensa de ideias, teses, dogmas e sentimentos que faziam aprofundar ainda mais num espaço sem fim.

Intocável, vagueava até tatear numa realidade cada vez mais clara, num cheiro cego de quem ali só escutava o buraco meio misantropo de línguas que vinham a toda hora diferentes: o húngaro do diabo, o polonês da wodka, o neerlandês da fumaça, o barato do tcheco, o embrulho do croata, o grito da sicília e o sueco de um mundo que um dia há de vir – e que assim seja, amém.

Sê!, advertia-me a todo instante.

E deixava-me notar algo de muito errado no ar.

Ar rarefeito, sublinhe-se.

E que aspirado por quem não era, trazia o arrebatador efeito de compreender que a ordem das nossas coisas merece um novo arranjo.

Merecia a desordem para ser reconstruída à imagem e à semelhança de tudo o que é mais justo neste nonsense mar que permanece dividido, diluído, negro, morto.

Afinal, antes da solidão, enquanto ainda se está apenas sozinho, embrulhamo-nos num estômago de inquietações que nos fazemos sentir sem mentir, a permitir levar-se adiante como se aquilo tudo não fosse conosco, e como se dissimular para todo o exército que se forma diante do espelho fosse a resoluta salvação.

Não, não resolve.

Não, você não consegue não se ver.

E mais.

As emas que em volta emanam e borbulham aos borbotões, reclusas com suas cabeças mergulhadas em seus umbigos ou outros planetas, não te podem convencer de que a ótica é outra, de que o-seu-ponto-de-vista-não-tem-a-vista-verídica e de que as viscosas e grossas vistas de quem finge não querer ver compõem o melhor remédio da terra.

E então, naquele infindo tempo de isolação, você simplesmente percebe que lá atrás dele e de todas as sete cores daquela turva imensidão está, a um palmo do nariz, o pote dourado de colírio.

Mas, sem calma nesta hora: não se permita o mínimo resfôlego, pois o leão não é manso.

É que a sina solitária finge-se para não se mostrar que ali se está só no princípio, e neles outros verbos em outras conjugações.

Sempre, sempre no começo, a te levar só para eternos recomeços que te fazem sempre querer voltar ao zero, à vala vazia, àquela avara estaca do status quo ante, ao estado que te mantém no falso estado que te alivia para te alienar na pureza da inércia, do cômodo, do morno engodo vomitado pelas letras cartesianas da lei, da moral e dos bons costumes que por toda a vida te desencaminharam.

Esta é a promessa, esta é a jura da existência.

E por isso o privilégio por encontrar a gota d´água da cola mágica que sempre prometeram jamais existir.

Sim, sozinho e na poética da solidão, se descobre melhor o mundo que se há de viver a dois, a seis, em conjunto, em sociedade, coletivamente.

De dentro para fora, meu mundo em construção, como um álbum de figurinhas que de criança quase desisti: custoso, incerto, demorado e difícil, mas que completei e que para sempre ficará comigo guardado.

Como ficarão, espero, as lições aprendidas daquela minha silenciosa peregrinação.

Todas bem emaranhadas, apreendidas no labirinto da alma.



quarta-feira, 12 de junho de 2019

# orgulho e ilusão

Ana Maria, eu, Ben Gava, Simas, Flávia, Edu, Ben Simas e Candinha: pra deixar de padecer

Esta foto publicada hoje pelo Edu Goldenberg é daquelas coisas que provocam uma catarse sentimental.

Era junho de 2014. 

Era junho de Copa do Mundo.

Era junho de abertura da Copa do Mundo no Brasil.

E ali naqueles nossos olhos ainda se via certo orgulho e ilusão.

O orgulho do país, ainda iludidos por alguma coisa que se podia chamar de democracia, por uma sociedade que parecia acreditar no progresso e por toda uma frente política que prometia enfrentar (sem sair muito do lugar) os nossos históricos obstáculos.

O orgulho de usar um verde e amarelo, ainda iludidos por uma coesão nacional de faz-de-conta, pela falsa ideia de nação soberana e pela frágil união em torno da constitucional harmonia social como valor fundante

O orgulho de um futebol brasileiro, ainda iludidos pela paixão da bola que cegava uma crescente ofensiva a imperativos culturais, sociais e políticos de maior importância.

Dali a pouco tempoporque por aqui talvez nunca possa mesmo dar certo, tudo começaria a desmoronar.

Pelo pouco que fez e acertou, um governo foi derrubado por um golpe jurídico-parlamentar,  apoiado por um barulhento séquito de amarelos lobotomizados da cabeça aos pés.

Pelo pouco de nacionalismo que havia, a lógica fácil contada por memes, pastores e tevês e a perversidade de instituições republicanas destruíram as nossas perspectivas de dar um passo a mais, de dar um grande salto para a nossa miserabilidade política e social.

E pelo pouco do pouco que restava, nosso futebol sucumbiu à tragédia do oba-oba, ao fracasso de uma era em que a imagem é tudo e, fundamentalmente, ao descaso à sua razão de ser como uma das maiores expressões da cultura popular.

Os anos foram assim.

E apagou aquela ilusão que tínhamos de tantos amigos e parentes que guardavam dentro de si e nos armários da alma toda a sorte de delírios, ódios, pestes, câncer, pneumonia, raiva, rubéola, tuberculose, anemia, rancor, cisticercose, caxumba, recalque e difteria.

E apagou aquela ilusão de um país vivo, pulsando potência em frenéticos arroubos de felicidade do presente e consciência do porvir, com suficiente coragem para impedir raptos fratricidas de um delinquente político qualquer.

E apagou aquela ilusão de que vivíamos sob uma sociedade democrática, repleta de homens cordiais e cheios de harmonia, todos conduzidos pelas ideias iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. 

Ilusões da vida, ilusões da história das quais fingíamos um tipo estranho de orgulho, diante das quais relutávamos em acordar.

O Brasil, naquele distante junho de 2014, parece assim ter dado um grande e último suspiro para o que adviria.

E cruzamos a ponte para o abismo, como se no timão do barco estivesse Caronte a conduzir um povo inteiro até o desembarque em algum círculo do inferno.

Desde então, a partir dos estádios da Copa e das orlas das nossas copacabanas, expôs-se as vísceras de um país marcado pelas cortinas fechadas do passado, que trancafia a mãe preta das periferias e que passou a cantar hinos em louvor a um mito feito de barro, pus e fel.

Desde então não se avança, não se pula, não se dança e nem se dá muito o direito a sonhar aqueles sonhos de uma utopia a ser construída. 

Desde então pautas sodomitas, operações bandidas, propostas de araque e agentes infaustos provocam-nos vertigens típicas de uma sociedade perdida, repleta de ignorância, indiferença e ódio a provocar pesadelos diários sobre nossos destinos.

Desde então destroçamo-nos em uma terra zumbi abandonada sob os restos de algo tipo capitalismo, um território triste e tétrico onde se misturam práticas do velho-oeste com circunstâncias de Mad Max, no qual grande parcela da população perambula selvagemente em busca de "pão, paz e terra", fazendo as suas revoluções particulares vinte e quatro horas por dia que nunca termina.

O Brasil, neste junho de 2019, parece assim estar prostrado e continuamente chamuscado por algum dragão do apocalipse, com sua gente intestinal e incontrolavelmente acreditando nos contos platinados e zapeados em que mocinhos redentores da pátria surgem para pôr um basta em-tudo-que-está-aí, a repetir frases sem sentido, ideias desconexas e conclusões estapafúrdias à revelia do óbvio e da realidade.

Enfim, eis o retrato, eis o tempo que passa e que vem à memória desde o tão longe junho de 2014.

E senão a luta em chama que não se apaga, daquele Brasil da foto não resta praticamente nada.

Mas, mesmo agora, no mais sombrio dos mundos, o que importa é que daquela foto restam a amizades que construímos aqui neste Rio de Janeiro.

E, principalmente, daquela foto resta o brilho dos olhos incendiários dos dois Benjamins, que agora se juntam aos de Santiago e Leonel para nos encher de luz e amor diante do caos.

Afinal, é desta perspectiva que vem a resistência e a esperança de um Brasil.