sexta-feira, 31 de julho de 2015

# lado a lado



O recente feito do Rivaldo -- sim, aquele do penta -- e do seu filho, ao disputarem juntos um jogo da 2ª divisão brasileira e fazerem os gols da vitória do seu time, não foi daqueles de apenas fazer história -- e de ser muito mais significativo do que aquele próprio penta (v. aqui).

Foi, para além, um daqueles negócios de enxaguar a retina, de lavar a alma e de revelar, mais uma vez, o que o futebol é capaz.

Eu, bem, eu não sei ao certo quando foi a última vez que joguei futebol com o meu pai.

Deve ter sido lá no ótimo campo da Chácara Lunardon, nos arredores de Colombo, região metropolitana de Curitiba, onde por anos, nas noites de terça-feira, muita gente se reuniu para jogar bola, assar carnes e trucar.

E isso faz tempo.

Mais do que o tempo, custa-me lembrar porque, infelizmente, jamais acreditamos no tempo, e neste descrédito não marcamos as nossas passagens, desleixando os pequenos grandes fatos da vida.

Afinal, não imaginamos -- ou duvidamos -- que os momentos, que quaisquer momentos, podem ser os últimos.

E numa daquelas noites de terça-feira, de um mês qualquer de um ano que já não posso imaginar, tive com meu velho a última partida de futebol.

Ele era um camisa 2 moderno e de garba elegância, um lateral direito com refinada técnica, apurada visão e, como assim deve honrar todo bom jogar nascido e criado no Sul do Brasil, daqueles que perdiam um joelho mas não perdiam uma dividida.

Carlos Aberto Torres? Não... o capita que me desculpe, mas nunca houve um lateral direito melhor que meu velho.

Recordo, como se fora hoje, do seu chute, da sua precisão nos cruzamentos e, diria Nelson Rodrigues, da sua saúde de vaca premiada que nem as doses industrias de nicotina abalavam -- às favas, a modéstia (e as advertências rotuladas pelo Ministério da Saúde).

Entre nós, a onda era sempre jogarmos juntos, burlando legitimamente os sorteios da pelada que porventura insistisse em nos separasse.

Entretanto, não tinha maré mansa: no mais das vezes saíamos discutindo, na vitória ou na derrota, e como se num divã seguíamos, até chegar em casa, bicudos e em filosóficas resenhas sobre um lateral mal batido, um toque mal feito ou um arremate mal calculado.

E toda terça-feira o espetáculo era o mesmo -- no fundo, claro, adorávamos tudo isso.

Até que tivemos uma última terça-feira.

Nela, o meu velho certamente já deveria revelar o peso da idade, da barriga, dos pulmões, dos músculos e dos tendões.

Nela, eu certamente já deveria ter crescido mais, revelando menos paciência, menos obediência e menos gosto por aqueles programas atípicos para quem, pelos olhos dos 20 anos, tinha o fetiche do mundo à disposição. 

Mas, vejam só, a graça da memória é que ela não nos costuma trazer a débâcle daquilo que sempre idealizamos.

E por isso não guardo estes últimos dias da nossa despedida dos campos.

Guardo, sim, aqueles outros momentos: nós, em grande forma, vestindo os meiões à beira do campo, amarrando nossas chuteiras pretas, trocando longos lançamentos enquanto aquecimento e, claro, jogando juntos.

Jogando e discutindo, jogando e rindo, jogando e compartilhando a existência a cada lance, a cada minuto, perto, lado a lado.

São essas algumas das imagens que melhor cuido, armazenadas como relíquias da minha história.

E são imagens como essas que um dia também ouso ver, num mesmo palco da bola, junto com Benjamin e Santiago.

Salve, o futebol.




terça-feira, 28 de julho de 2015

# aranha verde



Orgulhoso dos dias e noites a vestir rubro-negro e a acompanhar, in loco ou não, o amado clube da Baixada, tinha cá pra mim que aquela quarta-feira nada mais seria senão uma outra noite de futebol para se ver na tv, indolente, na companhia do meu também atleticano pai.

Era 1985 e eu, de muita tenra idade, tinha o futebol como o meu mundo, e assim já era capaz de entender o mundo pelos olhos de um jogo de futebol.

Entretanto, à época, a inocente infância ainda impedia de sofrer na torcida pela desgraça da equipe que ali, numa inusitada final de campeonato brasileiro,  estia verde-e-branco.

E naquela noite e naquele palco pude confirmar que estava a ver um dos grandes jogadores da minha história de futebol.

Que baita atuação, meus senhores.

Soberba, deslumbrante, de encher os olhos de um piá ainda imaculado por quaisquer dos pecados capitais que poderiam proibir de enxergar, no arquirrival, um craque de bola.

A pegar tudo -- ou quase tudo, pois um repicado chute acabou entrando --, aquele sujeito com tipo de vilão de faroeste americano tornou-se o grande responsável pelo resultado final daquele jogo.

E não no naquele, mas de tantos outros daquele torneio de 85.

Um desempenho magistral, homérico, digno de lhe valer uma placa, um busto, uma estátua, um caminhão de bombeiro só para ele -- um Alto da Glória só para ele.

Afinal, ora, não apenas "gols" deveriam merecer tais homenagens, mas também a sua antítese, pela magnânima arte, também lhes é credor.

Ali, naquele jogo, com cada vez mais coragem e competência, parecia um muro vivo, gigante, octópode.

Mais do que isso, parecia a encarnação de alguma divindade abençoada pelos supremos deuses das metas.

Por cima, por baixo, ao longe, de perto, à direita, da esquerda, pelo centro, do corner, pela frente... os milagres deslumbravam a mim e a todo o estádio que contra ele torcia.

Já era um mito, e não só na terra da futura aranha marrom.

Um mito nacional, eterno, impávido e colosso.

Num dos maiores goleiros que vi jogar, Rafael Camarota, a minha homenagem aos coxas, neste aniversário de velhinhos 30 anos daquele título cuja lembrança me foi comovidamente trazida aqui, no ultimo domingo. 



terça-feira, 21 de julho de 2015

# o umbigo e o suicídio moral na sociedade do espetáculo



Na Grécia antiga a sociedade baseava-se no ser e no ter conhecimento, razão pela qual os pensadores tinham a maior importância e o maior destaque nos meios políticos, sociais e laborais da época.

Depois, o mundo viveu séculos de obscurantismo com uma onipotente, onipresente e onisciente Igreja, nos quais ela e os monarcas concentravam tudo sob uma aura divinal, a ambos a sociedade subjugando-se.

Veio a Renascença e o Iluminismo, e com elas a "ética antropocêntrica" de Kant, tornando o cidadão o centro do universo e passando a questionar aqueles poderes divinais.

E hoje, exacerbada essa condição do "homem-centro-do-universo", vive-se num individualismo que exalta o umbigo e numa busca não do ser e sim do ter ou mesmo do parecer ser e ter, isso tudo motivado pelos meios de comunicação -- os intermediários e hienas do consumo -- e por grandes empresas -- o fim em si mesmas.

Isso tudo foi ideologizado por Guy Debord, na sua obra "A Sociedade do Espetáculo".

Nela, extirpam-se os diálogos e os grandes pensamentos em prol de uma representação figurativa, expositiva, teatral e materialista do cotidiano existente sem o "dialogar" e o "pensar", mas no consumir e no (se) mostrar.

Para Debord, o cidadão que produz e pertence à classe operária como proletário tende a se conformar com a situação, pois não há mudança para ele a não ser que veja de uma forma diferente, que estude e seja um pensante.

Porem, quanto mais o consumidor fica habituado à imagem, à mercadoria e ao consumo, menos ele compreende os seus desejos e, maiormente, as suas necessidades, a ficar ainda mais dependente a esse sistema.

Sob o aspecto marxista, esse sistema vive da “fabricação da alienação”, na qual tudo se vende e tudo se compra, como status, como (pseudo)riqueza e como poder.

É o consumidor de ilusões, que só será feliz -- e rico, e poderoso -- comprando, consumindo, gastando, tendo, parecendo, se mostrando.

É a grande mágica perversa do capitalismo, que nas sociedades desenvolvidas, como na Europa -- já se vão 500 anos... --, não se contempla nos mesmos moldes que no Brasil.

Entre esses dois mundos, há um abismo a separar o que prepondera na sociedade: lá, o ser, aqui, o ter.

Uma consequência séria, segundo Debord, é a total desinformação da sociedade.

Não a desinformação como negação da realidade, e sim um novo tipo de informação que contém uma certa parte de verdade, o qual será usado de forma manipulatória.
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E o mundo da desinformação é o espaço onde já não existe mais o tempo necessário para qualquer verificação dos fatos, para qualquer pensar e para qualquer refletir.

E essa ausência do ser, que deveria pensar, refletir e crer numa sociedade diferente daquela que acha existente sob o seu umbigo, assente no individualismo possessivo e na ignorância conveniente, é o caminho mais lógico para o autofim como "ser", para o involuntário "suicídio moral", pois fixa imutavelmente como pessoa apta a estar nesta sociedade do espetáculo, mas inapta para viver numa sociedade humana e cristã.

Os poetas costumam ser os que primeiro ousam compreender as coisas “demasiadamente humanas”, como disse Nietzsche.

Assim, Fernando Pessoa ("Poesias de Álvaro Campos"), além de compreender algumas coisas humanas, faz um importante alerta preventivo aos suicidas potenciais que ora estão representados nos homens que "têm", mas não "são":

"Se te queres matar, porque não te queres matar? / ... De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas a que chamamos o mundo? A cinematografia das horas representadas / Por actores de convenções e poses determinadas, / O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim? / De que te serve o teu mundo interior que desconheces? / Talvez, matando-te, o conheças finalmente... / Talvez, acabando, comeces... / E de qualquer forma, se te cansa seres, / Ah, cansa-te nobremente / Ó sombra fútil chamada gente! / Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... / Sem ti correrá tudo sem ti. / Talvez seja pior para outros existires que matares-te... / Talvez peses mais durando, que deixando de durar... / A mágoa dos outros? / ... Tens remorso adiantado / De que te chorem? / Descansa: pouco te chorarão... / ... Muito mais morto aqui que calculas, / Mesmo que estejas muito mais vivo além... / ... Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? / És importante para ti, porque é a ti que te sentes. / És tudo para ti, porque para ti és o universo, / E o próprio universo e os outros Satélites da tua subjectividade objectiva. / És importante para ti porque só tu és importante para ti. / ... Se assim amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente / ... Dispersa-te, sistema físico-químico / De células nocturnamente conscientes / Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, / Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências ...".




segunda-feira, 6 de julho de 2015

# não!



Aprendi desde cedo com meus pais: nunca diga "amém" para tudo.

Ou seja, o "não!", por tantas vezes, é o melhor caminho; por vezes, a única saída.

No âmbito do Estado, particularmente o brasileiro, a conversa é outra: não se enfrenta, não se discute, não se questiona e não se pensa a coisa e sobre as coisas.

Pelo contrário, a regra é dobrar-se aos interesses privados, às vontades mesquinhas, ao oportunismo de umbigo (e pequeno burguês) de quem ocupa o cargo público para defender esse, exclusivamente esse, interesse.

É evidente que na história há exceções e se conhece casos e pessoas que, no poder, de tudo fizeram ou tentaram fazer para quebrar a corrente e distribuir o ouro, construindo alternativas, transformando o presente e fulminando a vontade bandida e secular, com todos os seus custos e ônus, por meios em cujo fim estaria uma nova sociedade.

Entretanto, acaba-se encarando com naturalidade -- pois politicamente aceitável (ou correto) -- o ajoelhar-se diante da realidade, o comer no prato de quem explora e a submissão a toda e qualquer regra imposta goela abaixo pelos donos do capital.

Ao cabo, as migalhas para o "social", o tal açúcar que doura a pílula deste modelo político-econômico, como metaforiza Mangabeira Unger.

E eis que ressurgem os gregos.

E eis que os gregos, diante das décadas de desespero sob os chicotes e as algemas da mesma turma de sempre, elegem a saída para a esquerda, como num resgate inesperado de uma reflexão filosófica milenar.

Sim, à esquerda, volver!

E o Syriza, o mais jovem, audacioso e intelectualizado partido político nacional, vence as eleições presidenciais de 2014.

Como primeira medida, esta esquerda, eleita para mudar tudo para que tudo mude -- ao contrário da proposta lampedusiana ("mude-se tudo para tudo permanecer como está") --, resolve estancar a sangria do povo grego, devastado socialmente.

Resolve, pois, enfrentar o tridente do capiroto (FMI, Banco Europeu e Comissão Europeia), a lógica neoliberal e, de uma só vez, acabar com os desmandos desequilibrados de Bruxelas e desafogar-se do mar alemão que dia a dia afundava gregos e troianos para o abismo.

Mas o Syriza, eleito para trazer a luz à tragédia grega, vai além.

E, diante da indigna "proposta" dos credores da absurda dívida pública helênica -- dívida essa que foi criada por culpa de uma pseudo-esquerda, de uma pseudo-União Europeia, de um pseudo-sistema de bem-estar social e, mais do que tudo isso, por culpa de um gigante esquema corrupto-rentista que, em 5 anos, transformou 100 bilhões em mais de meio trilhão de euros --, este seu governo energiza a democracia (ah, os gregos...) para convocar um plebiscito: "povo, nós recém-eleitos não queremos, mas, e vocês, aceitam a proposta que nos fizeram?"

E, neste domingo, um rotundo -- apud Leonel Brizola -- "NÃO" venceu (v. aqui).

Ora, chega de uma austeridade e de um servilismo atrozes que apenas alimentam o grande capital.

Chega de especuladores e de privilégios que se sustentam às nossas custas e pela nossa dor  e suor.

Chega de sangrarmos, assim escolheu grande parte do sofrido povo grego.

Este "NÃO" terá um custo, é claro.

Afinal, os donos do capital internacional e das rédeas europeias, em conluio com a plutocracia grega, não aceitarão tamanha rebeldia.

Mas será um custo superável, um custo temporário, um custo que em contrapartida resgata a estima e a dignidade de um povo usado e abusado por décadas e que dará o impulso para a reconstrução de uma nação.

E o resultado virá, alcançado por modelos alternativos de transformação institucional promovidos pelo transgressivo e progressista comando eleito grego.

Por aqui, enfim, urge ao PT mirar-se nas mulheres e nestes homens de Atenas.

Pois já é hora de entendermos, minha gente: na história, a obediência raramente compensa.