Ana Maria, eu, Ben Gava, Simas, Flávia, Edu, Ben Simas e Candinha: pra deixar de padecer
Esta foto publicada hoje pelo Edu Goldenberg é daquelas coisas que provocam uma catarse sentimental.
Era junho de 2014.
Era junho de Copa do Mundo.
Era junho de abertura da Copa do Mundo no Brasil.
E ali naqueles nossos olhos ainda se via certo orgulho e ilusão.
O orgulho do país, ainda iludidos por alguma coisa que se podia chamar de democracia, por uma sociedade que parecia acreditar no progresso e por toda uma frente política que prometia enfrentar (sem sair muito do lugar) os nossos históricos obstáculos.
O orgulho de usar um verde e amarelo, ainda iludidos por uma coesão nacional de faz-de-conta, pela falsa ideia de nação soberana e pela frágil união em torno da constitucional harmonia social como valor fundante.
O orgulho de um futebol brasileiro, ainda iludidos pela paixão da bola que cegava uma crescente ofensiva a imperativos culturais, sociais e políticos de maior importância.
Dali a pouco tempo, porque por aqui talvez nunca possa mesmo dar certo, tudo começaria a desmoronar.
Pelo pouco que fez e acertou, um governo foi derrubado por um golpe jurídico-parlamentar, apoiado por um barulhento séquito de amarelos lobotomizados da cabeça aos pés.
Pelo pouco de nacionalismo que havia, a lógica fácil contada por memes, pastores e tevês e a perversidade de instituições republicanas destruíram as nossas perspectivas de dar um passo a mais, de dar um grande salto para a nossa miserabilidade política e social.
E pelo pouco do pouco que restava, nosso futebol sucumbiu à tragédia do oba-oba, ao fracasso de uma era em que a imagem é tudo e, fundamentalmente, ao descaso à sua razão de ser como uma das maiores expressões da cultura popular.
Os anos foram assim.
E apagou aquela ilusão que tínhamos de tantos amigos e parentes que guardavam dentro de si e nos armários da alma toda a sorte de delírios, ódios, pestes, câncer, pneumonia, raiva, rubéola, tuberculose, anemia, rancor, cisticercose, caxumba, recalque e difteria.
E apagou aquela ilusão de um país vivo, pulsando potência em frenéticos arroubos de felicidade do presente e consciência do porvir, com suficiente coragem para impedir raptos fratricidas de um delinquente político qualquer.
E apagou aquela ilusão de que vivíamos sob uma sociedade democrática, repleta de homens cordiais e cheios de harmonia, todos conduzidos pelas ideias iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade.
Ilusões da vida, ilusões da história das quais fingíamos um tipo estranho de orgulho, diante das quais relutávamos em acordar.
Ilusões da vida, ilusões da história das quais fingíamos um tipo estranho de orgulho, diante das quais relutávamos em acordar.
O Brasil, naquele distante junho de 2014, parece assim ter dado um grande e último suspiro para o que adviria.
E cruzamos a ponte para o abismo, como se no timão do barco estivesse Caronte a conduzir um povo inteiro até o desembarque em algum círculo do inferno.
Desde então, a partir dos estádios da Copa e das orlas das nossas copacabanas, expôs-se as vísceras de um país marcado pelas cortinas fechadas do passado, que trancafia a mãe preta das periferias e que passou a cantar hinos em louvor a um mito feito de barro, pus e fel.
Desde então não se avança, não se pula, não se dança e nem se dá muito o direito a sonhar aqueles sonhos de uma utopia a ser construída.
Desde então pautas sodomitas, operações bandidas, propostas de araque e agentes infaustos provocam-nos vertigens típicas de uma sociedade perdida, repleta de ignorância, indiferença e ódio a provocar pesadelos diários sobre nossos destinos.
Desde então destroçamo-nos em uma terra zumbi abandonada sob os restos de algo tipo capitalismo, um território triste e tétrico onde se misturam práticas do velho-oeste com circunstâncias de Mad Max, no qual grande parcela da população perambula selvagemente em busca de "pão, paz e terra", fazendo as suas revoluções particulares vinte e quatro horas por dia que nunca termina.
O Brasil, neste junho de 2019, parece assim estar prostrado e continuamente chamuscado por algum dragão do apocalipse, com sua gente intestinal e incontrolavelmente acreditando nos contos platinados e zapeados em que mocinhos redentores da pátria surgem para pôr um basta em-tudo-que-está-aí, a repetir frases sem sentido, ideias desconexas e conclusões estapafúrdias à revelia do óbvio e da realidade.
Enfim, eis o retrato, eis o tempo que passa e que vem à memória desde o tão longe junho de 2014.
E senão a luta em chama que não se apaga, daquele Brasil da foto não resta praticamente nada.
Mas, mesmo agora, no mais sombrio dos mundos, o que importa é que daquela foto restam a amizades que construímos aqui neste Rio de Janeiro.
E, principalmente, daquela foto resta o brilho dos olhos incendiários dos dois Benjamins, que agora se juntam aos de Santiago e Leonel para nos encher de luz e amor diante do caos.
Afinal, é desta perspectiva que vem a resistência e a esperança de um Brasil.