sexta-feira, 11 de agosto de 2017

# à guisa de blasfêmia



"Dia do Advogado".

Um bom pretexto para muito brevemente se falar do Direito, instrumento de manejo do militante jurídico.

Se antes canonizado como uma ciência em si, tinha-se um Direito ensimesmado que provocava e frutificava o não-Direito, soerguido sobre a esquizofrenia jurídica de um mar de teses e decisões que nasciam da mesquinhez do causídico e da luxúria de magistrados e promotores; com tal fórmula, multiplicavam-se os aldrabões que rodeiam a metodologia (e o conceito) do Direito porque esse desfila sob o véu de um dogmatismo fajuto e retrógrado.

Hoje, mergulhado no caos por conta da sua transfiguração em Moral, o Direito descaracteriza-se, perde a sua razão de ser e passa a exigir, ainda que à margem desse momento tresloucado de "Lava-Jato", uma refundação.

O Direito, pois, precisa se transformar, ao menos, e imediatamente, no que toca a sua metodologia.

O Direito, para verdadeiramente funcionar, precisa se afastar de um conteúdo formal-idealizante, de modo a finalmente realizar o papel de transformação social e se consolidar como um instrumento de emancipação (e não de dominação), como ensinam Boaventura Santos e Mangabeira Unger.

Afinal, no seio do capitalismo liberal, o Direito subsiste como uma de suas ferramentas mais agudas de imobilização democrática.

E de um Direito que se quer apartado da Justiça, como na rotina enclausuradora de pobres e pretos, e relativizador da Lei, como no modus operandi das operações da Lava-Jato.

Todo o contexto contrarrevolucionário que afeta a sociedade tem no Direito hoje aplicado seu mais sólido baluarte, seu cão de guarda mais obediente e amedrontador.

Desde a crise do positivismo, maiormente no século XIX, os juízes deixaram de ser porta-vozes mecânicos da Lei e, com isso, a sua autonomia e dignidade constitucional passaram a ter um relevante papel na formação do legal e na oferta do justo.

Entretanto, o movediço avanço motivado por um tal neoconstitucionalismo tem provocado um Direito sinistro, que finca raízes no voluntarismo judicial, idealizador de um juízo moral ou da vontade política do aplicador da lei, no qual cumprir ou não a lei estaria na consciência mais ou menos iluminada desse, ao arrepio das regras constituintes.

Por outro lado, nos mais diversos campos, institutos do Direito são encarados com a intangibilidade da fé.

O conceito de "propriedade privada", para ficar num exemplo, não pode subsistir sob a mesma fórmula milenar, mística e mitômana, do direito individual; hoje, longe de qualquer canônica receita soviete (ou rousseauniana), novas e plurais formas de direito de propriedade devem ser promovidas e reguladas, seja comunitária, associativa, cooperativa, coletiva, fracionada, social ou quaisquer outras possibilidades que esperam por descoberta.

Ou o direito penal, para ficar noutro caso, continua a tratar o seu objeto como bem privado, pois não percebe que, no ambiente de um estado democrático, admitir a privatização da defesa do réu, para longe da exclusiva tutela de uma defensoria pública, apenas contribui para a idealização mentirosa e não garantista da ampla defesa, que ao cabo percebe a quase solitária criminalização de pobres e pretos -- ou dos "inimigos" da sociedade -- numa seleção nada arbitrária (e natural) de classes de transgressores.

Por essas veredas é que se tem a ideia de transformação, de um Direito que dialogue com a heresia e a utopia para a reconstrução de uma nova matriz prático-metodológica, de modo a não perpetuar a mediocridade sufocante encarnada nos "homens da lei".

E, com ela, o advento de uma nova cultura jurídica que aproxime a justiça da cidadania e da democracia.

Sem a degeneração moral e intelectual de magistrados (v. aqui), promotores públicos (v. aqui) e advogados que atuam medusicamente atraídos pelos holofotes da mídia e do poder, agora cônscios e verdadeiramente responsabilizados pelos seus papéis num ambiente limitado e sustentado pelo estado democrático de direito.

Sem as relações feudais que envolvem os grandes escritórios de advocacia e os membros do sistema judiciário, agora desmercantilizando o método e o resultado das ações judiciais.

Sem a produção interpretativa à la carte que se afasta do quadro e do espírito normativos, agora repotencializando os ideais impessoal e democrático dos marcos jurídicos.

Sem a deficiência conveniente do Poder Judiciário que se sustenta na lentidão de um processo medieval e na distância de um sistema nobilíssimo, agora reformando a prática e o palco de aplicação do Direito.

Sem os salamaleques que registram a formação enciclopédica e escolástica de advogados, promotores e juízes ignorantes, insensíveis, bucólicos, neutros e a léguas da conjuntura e da história nacional, agora levando a realidade brasileira (política, social, econômica...) para os bancos das faculdades, pluralizando-as radicalmente, de modo a formar cabeças verdadeiramente conscientes e independentes.

Sem o oco dos imperativos constitucionais de papel que criam sombras de direitos fundamentais e amarras heterogêneas de realização, agora oferecendo alternativas ao Direito, com novos conceitos e atores (e movimentos) sociais capazes de produzir novas fontes para a própria libertação sob a perspectiva dos grandes e intocáveis conflitos nacionais.

O estelionato funcional, a picaretagem científica, a esterilidade jurisdicional, a assepsia social e o fetiche institucional são, pois, os grandes enfrentamentos perante os quais a comunidade jurídica, para a reconstrução do Direito e a realização da Justiça, não pode tergiversar.

É a nossa dignidade pessoal de juristas e a dignidade da nossa ciência que estão em jogo.