sábado, 14 de dezembro de 2013

# primeiro círculo



O Rio, não diferente do Brasil, é repleto de pessoas que se amontoam pelos cantos, flancos, bancos e tantos buracos e lapas da cidade.
 
E neste cotidiano avassalador, há um evento que sempre me faz parar para pensar muito sobre tudo: os cafés da manhã com os moradores de rua, todas as quintas-feiras, na Glória, região central da cidade.
 
Na verdade, este trabalho institucionaliza-se no PROAMOR (v. aqui) e os cafés da manhã, a cada dia da semana em um ponto fixo do Rio, são apenas os canais de entrada de todo o incipiente processo de amparo às pessoas que têm as suas vidas na rua. 
 
Nesta quinta-feira, nada diferente do que se vê em todas as vezes, o mundo mostrou as suas vísceras, o seu outro lado, o lado B, o lado que não se quer ver.
 
Aqui, não é a "revolução" que não se televisona (v. aqui).

Aqui é a vida desta gente largada, ignorada e estuprada a cada minuto por uma ampulheta que insiste em escorrer cada vez mais devagar. 

Um easy rider sem fetiche, sem o glamour do lsd e sem as pompas de Woodstock.
 
É o retrato explícito, ao vivo e à cores, sobre o cúmulo deste ilógico sistema que acumula e desta ilógica vida que lamuria, o que nos dá a certeza da mais absoluta lógica cartesiana de que outro mundo é possível e de que outro plano existe.

E, por isso, ainda não consigo entender aqueles que comentam sobre a falta de lógica na crença divina, haja vista que nada é mais ilógico do que a forma desta vida terrena.
 
E ontem, em mais outra prova acachapante sobre isto tudo, no meio das mais de 150 pessoas que ali estavam, três velhos em frangalhos me saltam aos olhos.
 
Neste dia, afora uma razoável quantidade de roupas, tinha eu três mochilas usadas para distribuir; e, após o rito tradicional daquelas manhãs, chamei e me reuni com os três barbas brancas para entregá-las.
 
Cada qual já com a sua, sugeri que se livrassem dos sacos de estopa onde carregavam trapos, ratos e coisas podres – sim, carregavam a vida em enormes e sujos sacos pendurados às costas. 
 
Pensaram, titubearam, mas aceitaram a dica.
 
E começaram a esvaziar: cobras, lagartos, vermes, protozoários, afora restos e detritos de toda sorte.
 
O gesto de um deles, ao tirar um imenso embrulho de papel bolha azul-claro, me intrigou.
 
Tolo, perguntei "para quê" aquilo, e disse para ele jogar fora também.
 
"É meu colchão!", o vovô responde.
 
E por aí foi... uma coisa pior, mais triste e mais descartável que a outra – mas, é assim, juntando tudo que encontram que se sentem possuidores de alguma coisa, materialmente mais confortáveis.
 
Novamente, insistia para que começassem do zero e descartassem (quase) tudo. E mesmo ressabiados, aceitavam eliminar um a um daquele chorume.
 
Ao final, quase reduzido a pó todo aquele lixo que antes entupia os seus sacos, fechamos tranquilamente as mochilas.
 
E poucas vezes vi três pessoas tão felizes. 
 
Rodavam-se e desfilavam pela praça, a mostrar as novidades.
 
Agora, vejam só, carregavam as suas vidas literalmente nas costas.
 
Afortunados, já não seriam mais os “homens do saco”, cujas figuras os pais usam para amedrontar as crianças.
 
E como se eu fosse um rei mago, agradeceram-me muito.
 
Até saírem, de novo tomando o rumo em direção ao nada de sempre.
 
Como suspiraria Villa-Lobos no início da sua Valsa da Dor: “Êta, vida!”.