terça-feira, 23 de outubro de 2018

# se isto é uma sociedade



No livro "Ravensbrück - a história do campo de concentração nazista para mulheres" ("If this a woman", no original, cujo nome tem fonte na clássica obra de Primo Levi, "Se questo è un uomo", na qual descreve suas experiências em Auschwitz), entre outras revelações, apresenta-se a grande estratégia de sobrevivência daquelas mulheres confinadas e marcadas para morrer: fecharem-se ao que estava em volta e, buscando refúgio no círculo meio mágico que criavam entre elas, assim poderem viver.

E entre si, como se pudessem esquecer a tragédia e a barbárie que se passava do lado de fora daquele cotidiano insuportável, tornavam-se capazes de conversar, lembrar, sorrir e amar.

E entre elas, imersas numa realidade de dor, medo e angústia, poderiam ao menos juntas compartilhar todo o sofrimento e terror daquela situação.

Sei bem que há léguas a nos separar, mas nestes dias em que estive em Curitiba, minha terra natal, o dia a dia foi cercado e concentrado assim, entre os meus.

Com meus pais, minhas irmãs, minhas sobrinhas e alguns queridos amigos que comungam da mesma visão de mundo, que partilham dos mesmos valores e que percebem – com os olhos que esta terra haverá de comer – o rumo trágico das coisas, tive instantes de conversas, afetos e abraços que dão o conforto e ajudam a compreender o que está a se passar com a nossa sociedade. 

Doente, débil, bestial, raivoso e irracional, o mundo lá fora passa a ser inóspito para quem insiste em não querer ler a nossa realidade como a bula de cereal matinal ou não querer ver nossas soluções sociais estampadas em para-choques de caminhão.

Em Curitiba, militância à parte, estar agarrado aos meus era como não ouvir os gritos tresloucados desta gente amarelada, as frases enlatadas de bobos da corte, os preconceitos pré-iluministas de jegues de carga, os discursos da plataforma bélica e medieval de um verme alado e, claro, a ladainha nula e lamentável de quem acredita ser crível reinar de cócoras sobre o muro das isenções, como se fosse difícil escolher entre a luz e as trevas.

Com eles e ao lado da minha mulher e dos meus filhos, conseguia não sentir o gosto ou o cheiro do ódio, da vingança, da infâmia, da hipocrisia, da vilania, do fascismo e das cavernas onde há milhares de anos tacapes e grunhidos reinavam como modo de viver.

Entre nós, até tocávamos nas veias e feridas abertas da nossa sociedade em cujo tecido social floresce a indigência ética e cognitiva de tantos dos nossos pares que infelizmente atravessaram a margem civilizacional, mas o toque se fazia sempre com raciocínio e argumentos dignos de um debate racional, social e plural.

Ali, vejam só, pude cantar, jantar, rezar, brindar, abraçar, chorar e fazer juras de amor à uma vida que fora dali parece que trilhará sobre a plataforma de um navio pirata em direção ao alto-mar.

E não sei nadar, não sei cozinhar, não sei cerzir, não sei fazer tantas outras coisas que o destino talvez me obrigue a saber.

Mas, ao menos durante estes poucos dias, também pude deixar de saber que, por ser um "vermelho", era considerado um inimigo cujo fim é ser objeto da faxina mais-que-perfeita que visará ao meu abate – ou, na melhor das hipóteses, ao meu abate cívico, pátrio e moral. 

Ali, naquelas tantas horas de olhos nos olhos com cada um deles, a melancolia dava espaço a esperança e o tanto de ternura não fazia esquecer da necessidade de endurecer a cada dia e em cada circunstância.

Afinal, não é possível naturalizar este nosso estado de coisas tal qual muitos estão a fazer, admitindo um caminho sórdido sob a falsa compreensão de estar em cima de um muro, como se pairando equidistante a dois extremos – é mentira, uma ilusão de isenção e neutralidade cujo preço será caro demais para aceitar tal omissão.

Na beira do abismo onde o Brasil se encontra, há agora dois movimentos a serem feitos.

Ou recuamos para reconstruir esta sociedade desgraçada pela desigualdade, pela recessão e pela violência, sob os valores do iluminismo, os ares da modernidade e as pautas de uma agenda civilizatória.

Ou então daremos mais alguns passos que, pasmem, nos arremessarão para um nada admirável mundo novo, a reproduzir algo "tipo sociedade" que ousará misturar Idade Média com Whatsapp, que reunirá um comportamento selvagem com ideias zoófitas e que nos afundará num poço sem fim de cada vez mais desigualdade, mais recessão e mais violência.

Não sei se ainda há tempo.

Mas sei que volto para o Rio com muitas saudades daquele meu campo  e com a expectativa de não precisar dele para sobreviver.