sexta-feira, 5 de julho de 2013

# memórias de um estudante sem malícias


Em “Memórias de um Sargento de Milícias”, por muito pouco meu reino não ruiu.

E foram estas “memórias” que hoje me vieram à tona, quando, para desasnar, conversava rapidamente com uma amiga sobre literatura, mais precisamente sobre parte da literatura brasileira dos séculos XVIII e XIX.

Inicialmente, uma conclusão já óbvia: por que cargas d´água nós, no auge dos 12 anos, somos obrigados a ler Manuel Antonio de Almeida, Raul Pompéia, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e outras feras, em cujos livros pouco de significativo há para quem (ainda) não quer começar a ter o gosto pela literatura?

E de pronto sempre vem uma contra-pergunta, a afirmar que ninguém nesta fase infanto-juvenil gosta de estudar coisa alguma. Porém, é diferente: aqui temos coisas que se avolumam em duzentas ou trezentas páginas e que se rastejam para se impregnarem em nossas almas por luas e mais luas, quase meses, tudo muito diferente de um estudo com fórmulas químico-físicas, exercícios matemáticos ou curtos contos de história e geografia com começo-meio-fim e que duram alguns parágrafos ou páginas.

Sendo assim, vejamos: o que falar da poesia arcadista a ser decorada em todos os seus quadrantes? E dos parnasianos da gema que nos mandavam ler e a eles nos prostrar?

Ora, a leitura desta nossa antiga e arcaica literatura, quase pré-socrática, parece durar seis vidas, tempo suficiente para quereremos largar tudo e ir direto para o Inferno, ou ir lutar contra moinhos gigantes, ou ir tentar fugir de uma baleia enfurecida, ou quem sabe ir tomar chá com algum chapeleiro tresloucado. No mundo literário, todas estas opções são muito mais gratificantes.

Enquanto a nossa prosa pré-realista jamais conseguirá ser recebida pelos olhos juvenis, o que veio antes dos modernistas também poderia passar sem deixar vestígios. Ouso, inclusive, ser radical e dizer que, não fosse o brilhantismo máximo de Machado de Assis e de mais uns e outros da sua época, o nosso mundo literário iniciar-se-ia com a Semana de Arte Moderna, em cuja contemporaneidade temos a chegada dos nossos grandes gênios de verso e prosa.

Não estamos a exaltar o desconhecimento da nossa história, tão-pouco se trata de uma apologia à ignorância ou uma renegação aos estudos da nossa língua.

Mas, creio eu, se poderia dispensar um aprofundamento impertinente para aquele alucinante momento da vida, cujos efeitos, ainda que num ponto de vida utilitarista, são negativos, pois afasta potenciais leitores da nossa inculta e bela, afasta aqueles que, talvez poucos anos à frente, poderiam mergulhar no passado literário da última flor do lácio sem dor e sem preconceitos.

Foi então que minha amiga trouxe à nossa conversa a obra de Camilo Castelo Branco, escritor lusitano de dois séculos atrás e cujos textos confessei jamais ter lido.

“Relaxe e dispense, não perde nada”, disse ela, com uma segurança ímpar.

Meu mundo, oh, meu mundo por esta frase naquela tarde dos idos de 1985, quando o professor de Língua Portuguesa, ao invés de pular esta fase da literatura – que, é claro, está umbilicalmente relacionada à nossa – e os seus autores, obrigou-nos a leitura e a apresentação de um complexo trabalho daquela obra (resumo, análise dos personagens, aspectos sociais, culturais...) que fala das lembranças e desventuras de um milico de araque.

Era coisa para uma vida, pensava eu. E talvez tenha sido a partir dali meu ressábio quando sujeitos de verde-oliva me aparecem, a carregar o mau-agouro daquele período em que fiquei semanas e semanas trancafiado em meu quarto com aquele livro e com aqueles histórias absolutamente chatas e longas de um sujeito que militava em torno da funesta turma da farda.

Mas não foi este o fato mais significativo daquele momento.

Na verdade, o meu desespero foi ainda maior em razão da certeza que passava a ter: era eu uma besta, um jumento incapaz de compreender uma frase daquele livro se não lida seis vezes, ou um parágrafo se não repetido à exaustão. Confesso que até o título eu tive que ler e reler para sacar.

Assim, desesperava-me o fato de que, dali a poucos meses, não conseguiria traduzir meia-dúzia de vírgulas acerca daquilo que se passava como aquele sujeito naquele Rio de Janeiro quase medieval; angustiava-me a certeza de que não iria enxergar nenhum aspecto – ainda mais "aspectos" das mais variadas estirpes – para relatar; e saíam-me brotoejas por imaginar não conseguir escrever bulhufas de nenhum daqueles toscos personagens.

Impotente em buscar a exegese da obra ou de entender os objetivos do autor, peguntava-me, absoluto: o que serei no futuro, diante de tanta incapacidade de leitura? O que será de mim perante todos os meus colegas, com certeza mais sabichões e que muito bem entenderam as aventuras do sargento e cia?

E passados tantos e tantos dias, e passadas dezenas de folhas de papel-almaço num mequetrefe manuscrito, eis que na véspera da entrega supus finalizar aquilo que mal sabia como tinha começado.

Chegado o dia, adentra o professor em classe.

A sala muda, mas ninguém mais mudo do que eu, numa mudez que chegava a me cegar, impossibilitando-me sequer olhar para o colega ao lado e comparar forma ou tamanho. Era como se eu estivesse num mictório, em repouso e acabrunhado com o momento.

Ele faz a chamada e, ato contínuo, pede para cada um se levantar e deixar o trabalho feito sobre a mesa.

Ele termina a chamada, pega a pilha de trabalhos e passa a chamar um a um para devolvê-los, sem correção, sem contestação, sem comoção – e sem a minha humilhação.

Sim, era um blefe para provar a nossa leitura e os nossos estudos. E passa aquela aula toda, e parte da seguinte, a explicar a obra e seus texto e contextos.

E assim, mais do que aliviado pela minha ignorância ter sido resguardada e rasgada no silêncio da lixeira do pátio externo, vi que talvez eu não era tão asnil assim, pois coisa ou outra até havia captado daquilo tudo. 

Embora ainda hoje continue sem saber: afinal, por que Leonardo-Pataca foi abandonado pela cigana?