segunda-feira, 31 de março de 2014

# o baú da verdade sufocada


E os jornalões estampam nas manchetes os 50 anos do Golpe que ajudaram a dar.

Como diria Eça de Queirós, trata-se de má-fé cínica ou obtusidade córnea.

Todavia, bem se sabe que obtusa esta massa não é.

Logo, é cinismo de uma gente que ousa tratar os vinte e um anos de trevas (1964/1985) como um "escorregão", um "vacilo", tal qual, no seu íntimo, devem conceituar os anos todos de escravidão e de casas-grandes país adentro, por exemplo

E, pior, de uma gente que acredita que o obsequioso silêncio do Executivo, a claudicante atuação do Legislativo e os salomônicos passos de siri do Poder Judiciário acerca dos crimes promovidos pelo Estado ditatorial brasileiro são meras contingências do "pacto republicano" (sic), indispensável para a retomada da nossa ordem democrática.

Logo, a mando dos militares e da elite burguesa de plantão – os senhores do golpe civil-militar e daquela ditadura –, os grupos midiáticos defendem, com a sutileza que lhes convém, a perenização do acordo, cujas rédeas nos acorrentam ao passado de reticentes sombras.

Ora, o Brasil precisa, sim, exumar aquele período, abrir as valas hermeticamente fechadas dos esgotos dos nossos anos de deteriorada existência institucional para fazer exalar o cheiro daquela democracia torturada, morta e sepultada.

Ainda, a torta e viciada "Lei de Anistia" não pode continuar servindo de impeditivo à cicatrização de todas as feridas que aqueles funestos anos provocaram, sob uma interpretação convenientemente poética do STF (v. aqui).

Aprovada em 1979 por um Congresso desnacionalizado, a funcionar como fantoche de civis e milicos nauseabundos, a Lei de Anistia continua a impedir o julgamento de acusados de crimes cometidos durante o período ditatorial (tortura, sequestro, assassinato etc.), o que, para variar, confirma a nossa tradicional reputação de país da impunidade.

É claro que mudar a tal Lei é mais simples do que parece, como inclusive a maioria na América Latina já fez – tal qual os países europeus acometidos pelos regimes fascistas pós-Guerra , razão pela qual apenas o nosso espírito de "homem cordial", para dizer o mínimo, pode justificar a primeira decisão do STF (em 2010) de não revisar a lei, passando por cima de qualquer ordem justa e moral e tergiversando, como se rancor ou revanche estivem na pauta jurídica.

Não custa lembrar: a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a se manifestar sobre a "Guerrilha do Araguaia", decidiu que o Estado brasileiro deve processar (e punir) os responsáveis por violações aos direitos humanos durante a ditadura  ora, não se exige superpoderes exegéticos para entender que a sentença desse órgão internacional é extensiva a todos os crimes cometidos durante a ditadura.

Assim, deve o Governo brasileiro, por intermédio da "Comissão da Verdade", deixar de ter um atuação de bom menino, de politicamente (in)correto, de transmissora de mensagens e campanhas de paz&amor, para definitivamente, encampar um projeto de lei que revise, altere e acabe com a nefasta Lei de Anistia.

Chega de filminhos sobre aqueles anos, chega de discursos lacrimejantes sobre aquela época e chega de passar a mão na cabeça de quem tanto nos negou o sangue forte da liberdade e da igualdade. 

Enfrente-se o Congresso, seus barões e seus canhões; arroste-se os Tribunais e toda a sociedade conservadora que diuturnamente ultraja o progresso (e que sonha com milicos e salazares, como este português fascista que encontrei aqui); e, finalmente, se exponha à sociedade os retratos de quem não quer resolver este nosso passado de chumbo.

Afinal, é evidente que passar a limpo a nossa história exige preencher esta lacuna, urgentemente, abrindo o baú para se resgatar a verdade tanto sufocada e promover o processo e a condenação de todas aquelas pessoas ligadas ao lado canalha da força golpista.

Ainda que nas respectivas testas já se possa colar, desde sempre, a dívida moral que elas têm com o Brasil.